terça-feira, 26 de novembro de 2013

Areia e Tempo na Narrativa de uma Vida [3/4]

Ler parte 2/4

A narrativa caracteriza-se por não explicitar, de forma banal, a história, deixando-a sempre imprevisível. A passagem do tempo segue a mesma lógica. Por estar em um local ermo, hostil, as personagens não utilizam relógios. A distância entre dois locais é medida em dias de caminhada. Assim, diversos símbolos são utilizados para situar o espectador no tempo. Apenas dois deles comunicam claramente uma data. Na maioria das vezes, as imagens jogavam com referências que necessitavam da atenção e da análise do observador. A percepção semiótica do espectador é aguçada a todo instante. A seguir, diversos elementos imagéticos – complementados posteriormente por parcos diálogos – utilizados no filme para denotar tempo são analisados.

Os marcos temporais

A caravana

 A segunda tomada do filme pode, de imediato, não informar muito sobre o tempo, mas dá pistas. Um olhar mais atento pode capturar detalhes preciosos. Por exemplo, não há veículos motorizados na caravana. Com certeza, esta não foi uma escolha de Vasco. Carros capazes de atravessar dunas de areia ainda não haviam sido inventados. O grupo teve, então, de locomover seus pertences em jumentos e carroças.

Definindo espaço e tempo

Ao fim do plano atravessado pela caravana, um letreiro situa explicitamente o espectador no espaço e no tempo. A história inicia-se em 1910, no Maranhão, nordeste brasileiro.

A primeira mudança da paisagem

Ao encontrar o terreno que comprara, Vasco demonstra ter esperança de, um dia, nele abundar água. Ele e os demais integrantes do grupo firmam acampamento e iniciam a construção de uma casa. Aos 38min 06seg, um plano geral mostra a casa envolta em nova paisagem. De repente, tudo ao redor é alterado. A casa está quase ilhada, rodeada por uma grande lagoa. As dunas, atrás, mostram que a areia também se movimentou, formando um novo desenho. Aparece também, no topo da colina, o mercador, que passa pelo local uma vez ao ano. Dessa forma, o filme sugere a passagem do tempo.

A segunda mudança da paisagem

A casa, antes rodeada de água, está escorada a uma parede de areia. Novamente, a paisagem modificada sinaliza a passagem do tempo e a alteração de rumo na vida das personagens. Vê-se, no alto, da montanha de areia, uma criança. É Maria, filha de Áurea, nascida e já crescida. O plano geral dá lugar ao plano médio, que mostra a criança descendo a duna em direção à casa quase soterrada. Posteriormente, as dunas invadem a casa e matam D. Maria, que dormia.

O eclipse

O uso de fatos históricos é outro recurso da narrativa para situar o espectador no tempo. O eclipse solar ocorrido em 1919 aparece no filme. Nos planos que compõem o trecho a partir dos 51min 08seg, Áurea percebe que o sol está sendo encoberto, tudo está escurecendo. Então, volta o olhar para o céu e vislumbra o eclipse. Mas o que seria apenas recurso temporal acaba por também fazer parte da trama. Isso porque uma expedição de cientistas adentra as dunas à procura do lugar ideal para registrar em fotos o fenômeno natural.

Áurea segue os rastros deixados na areia pela expedição de cientistas e conhece um soldado que os escoltava até o local. Ela tem uma relação amorosa com o recruta. Então, pede-lhe que siga com os cientistas. O soldado pede autorização dos cientistas, que a concedem. Áurea informa que precisa buscar a mãe e a filha que ficaram em casa, há dois dias a pé dali. No entanto, ao retornar, encontra a casa soterrada. A mãe fora encoberta pela areia enquanto dormia. A filha, Maria, sobrevive.

O marco geodésico

A morte da mãe atrasa Áurea. Quando ela retorna ao local onde acampou a expedição de cientistas, com a filha, não há mais ninguém. Mais um plano de fuga é frustrado. Desta vez, vê-se a data exata do eclipse solar, 19 maio de 1919, grafado no marco geodésico. É informado, mais uma vez, de forma explícita, o período no qual a trama se encontra. Agora, é possível calcular a idade de Maria. A mãe, que chegou grávida em 1910, agora possui uma filha com, aproximadamente, 8 anos de idade.

Os aviões de guerra

Aos 1h 18min 45seg, um grupo de aviões de guerra – provavelmente um esquadrão – é avistado no céu. Abaixo deles, caminhando pela areia, vê-se uma pessoa. Há um corte e o plano muda para médio, exibindo Maria, já adulta, com caminhar errante, segurando uma garrafa de bebida alcoólica. Dá para diferenciar as personagens interpretadas por Fernanda Torres pelo caminhar e pelo vestido, agora despojado, mais condizente com o clima do local. Nota-se que esta pessoa não tem amarras com os costumes morais da época, presente nos centros urbanos. Ela nasceu e foi educada ali. Portanto, não se trata de Áurea, mas de Maria.

Mais tarde, aos 1h 23min 59seg, o trecho mostra Maria encontrando o corpo de um piloto na praia. O avião em que ele estava fora provavelmente atingido, causando sua queda. Esses símbolos estão associados à Segunda Guerra Mundial, da qual o Brasil participou ao lado das forças aliadas. A costa brasileira foi alvo de ataques alemães. O filme sugere, então, que a narrativa situa-se agora na década de 40.

O acesso por carro

O soldado que escoltara a expedição de cientistas em 1919 retorna ao local. Desta vez, ele é designado para recuperar o corpo do piloto. O acesso é feito por um jipe, diferentemente do que fizeram com os cientistas. Mostra-se, com isso, que os carros foram aprimorados para chegar a lugares de difícil acesso. A guerra está a todo vapor. Enquanto isso, nos EUA, o capitalismo se desenvolve sem amarras. O país só participa do fim da segunda guerra, sofrendo menos impacto econômico que os países que lutaram desde o início. O fordismo se destaca como modelo industrial e esta empresa lidera a produção mundial de carros.

A maquiagem e o figurino

A última sequencia do filme é o maior exemplo de utilização da maquiagem como recurso de tempo. As duas personagens que dialogam na mesma cena são interpretadas por Fernanda Montenegro. Neste momento, a diferença de idade é marcadamente expressa não só no andar e na voz (interpretação), mas também no rosto e no cabelo das personagens.

O figurino também auxilia a demarcação do tempo. No início do filme, mãe e filha vestem trajes do início do século XX. Quase não se via o corpo da mulher. No meio do filme, as personagens aparecem com roupas mais leves, improvisadas, desatando as amarras estilísticas da época, ditadas pelos centros urbanos. Na última sequencia do filme, Maria está vestida com trajes característicos da década de 70. Aproximadamente trinta anos se passaram. Ela foi para a cidade com o soldado, a pedido de Áurea, e agora retorna ao labirinto de areia para visitar sua mãe. O contraste entre duas vidas, entre duas gerações é nítido, mas também o é o elo que as une.

Na próxima e última parte desta análise, será abordado o 'psicológico' das personagens. O trecho final é esmiuçado para ilustrar a mudança comportamental das protagonistas e sua relação com o ambiente que as cerca.

Leia a última parte da análise, clicando AQUI.

Ler parte 2/4

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Areia e Tempo na Narrativa de uma Vida [2/4]

Ler a parte 1/4

Para auxiliar o processo de análise, optou-se por decupar a abertura e o fim do filme. Na abertura, descrita a seguir, o tipo de narrativa e o local são apresentados. Embora os personagens principais também o sejam, sua personalidade não é entregue por completo. O enredo é desvelado aos poucos, na medida em que os personagens ganham notoriedade.

A abertura do filme
0min 00seg - 7min 34seg

Por longos 2min 12seg, a tela preta anuncia os produtores, patrocinadores e apoiadores da realização cinematográfica que está por vir. As logomarcas são apresentadas de forma lenta. Ao fundo, um ruído distorcido remete ao zumbido provocado pelo vento ao encontrar uma barreira para atravessar (a fresta de uma janela, por exemplo). Esses aspectos produzem uma sensação de quietude que prenuncia um filme de narrativa lenta, com planos majoritariamente longos e finitos. Ao exibir os letreiros com a produtora executiva, o diretor, as atrizes principais e o título do filme, o barulho do vento ganha maior nitidez, aumentando gradativamente de volume.

A primeira imagem que se tem do filme propriamente dito é uma tomada aérea das dunas, dos Lençóis Maranhenses. Através deste grande plano, vê-se amontoados de areia com pequenos lagos em sua base. Não há sinal de aglomerado urbano ou mesmo de aldeia. Um pássaro é visto e ouvido sobrevoando livremente o local, fazendo o mesmo trajeto da câmera. Sem nenhuma dificuldade de percepção, enxerga-se sua sombra nas areias logo abaixo. O vento toma conta do ambiente, podendo notar também, ao longe, o som do mar. As poucas cores, sempre tendendo para o monocromático, variações de claro e escuro, discretas tonalidades, reforçam a sensação de um local ainda selvagem, com pouca interferência humana. O filme apresenta, portanto, o espaço onde se passará a história: um lugar distante da civilização, ermo, aparentemente inóspito.


O plano seguinte mostra uma paisagem. A câmera está fixa sob a areia, enaltecendo o seu intenso movimento ao ricochetear do forte vento. Ao fundo da imagem, um banco de areia, a parte mais alta da formação, por onde uma caravana começa a passar, partindo da extremidade esquerda para a extremidade direita do plano. Assim, em primeiro plano vê-se muita areia sendo carregada pelo vento, em sentido oposto ao da caravana. Esta caminha de forma irregular, esparsada, em grupos distintos, uns mais lentos que os outros, enfatizando a dificuldade de homens e de animais de caminhar sob o sol forte, a areia fofa e o vento de areia em direção oposta. Acima do banco de areia, um pequeno espaço é reservado para o céu, esbranquiçado, quase da mesma tonalidade da areia. As cores apresentadas pelo ambiente contrastam com a silhueta da caravana que o atravessa. Estrangeiros. Os letreiros com os nomes dos atores secundários são exibidos durante os 2min 11seg do trajeto. O som do vento predomina, mas ouve-se também, mais distantes, gritos de homens a puxar jumentos, a pedir ajuda e a incentivar os demais. Ao fim deste plano, o letreiro situa com clareza o espectador no espaço e no tempo: “Maranhão - Brasil 1910”. Agora, os comandos de voz dos homens ficam nítidos. O vento passa, então, a segundo plano da percepção auditiva. Nota-se claramente que os gritos mais audíveis são do homem que está à frente da caravana, tentando estimular os demais: “Vamos. Não parem”. Encerra-se a primeira sequência.

O grande plano passa para um plano médio. Os personagens começam a ser apresentados. A câmera ainda está fixa. O homem à frente da caravana é visto em plano frontal, movimentando-se na direção da câmera. Uma profusão de ruídos é escutada. Cabras berrando, carroceria sendo puxada, homens incentivando os demais, objetos tilintando ao caminhar irregular e contido dos jumentos. O vento permanece como pano de fundo. Vê-se ainda muita areia suspensa no ar. 


O próximo plano apresenta as duas protagonistas. Desta vez, a câmera está em movimento horizontal, em primeiro plano lateral, em close-up, acompanhando o andar das personagens. Nota-se que a cabeça delas, de perfil, entra e sai freneticamente do enquadramento. A expressão do rosto é de extremo cansaço físico. Elas estão muito suadas e utilizam lenços para proteger a cabeça do sol escaldante. A respiração ofegante toma conta do som. O espectador é levado a sentir o cansaço daquela caminhada desgastante. Ao fundo, ouve-se o guia da caravana avisar que o destino já se aproxima. As duas protagonistas não falam.

Com câmera fixa em plano médio, o chefe de expedição é novamente enfocado. Ele segura um mapa, faz uma rápida leitura e afirma a um componente da caravana ter chegado ao destino procurado, demonstrando ter esperança daquele terreno possuir, num futuro próximo, água. Vento e ruídos de fundo da caravana persistem. O primeiro diálogo do filme levanta questões sobre o motivo da migração daquele grupo para uma região tão distante. O objetivo do grupo era encontrar o local onde poderia morar e subsistir. Do que estariam fugindo, afinal?

Num roupante de entusiasmo, o guia da caravana atravessa todo o plano – geral e lateral. Ele conclama os demais membros a montar acampamento, certo de que compartilham da mesma euforia. As protagonistas avistam o que restou de um pequeno lago, ajoelham-se diante de uma pequena poça e banham-se, tentando apaziguar o calor provocado pela alta temperatura irradiada pelo sol e absorvida pela areia.

Os diálogos das duas sequências que compõem a abertura do filme são raros. Durante os 7min 35seg introdutórios, o espectador é recheado de sensações, que desvelam o local e a reação das personagens a ele. A história não é explicitada de imediato. O nome das personagens é apresentado nas próximas sequências, aos poucos. As suas personalidades delineiam-se gradativamente, sem pressa. Apesar da narrativa clássica, o enredo não é entregue ao espectador de imediato. As sequências iniciais levantam mais questões do que trazem respostas a respeito da trama. 


Um possível motivo para a migração da família para os Lençóis Maranhenses pode ser obtido com o auxílio de uma contextualização histórica. Em 1910, o Brasil passava por graves problemas financeiros. Diversos bancos decretaram falência. Os grandes centros urbanos estavam com a economia combalida. A dívida interna e externa era muito alta. Dessa forma, pode se justificar o entusiasmo de Vasco, o guia da caravana, ao encontrar o local e demonstrar esperança de ter ali água num futuro breve. Na sequência que se iniciar aos 16min 55seg, durante uma discussão entre Vasco e sua esposa, Áurea, que se recusava a entrar na cabana de palha e madeira recém-construída, os diálogos desvendam o mistério:

Áurea: “Eu tinha a minha casa.
Vasco: “Você não tinha nada. Tinha dívidas, só.
Áurea: “Morar aqui é me fazer pagar caro demais pelas minhas dívidas.
Vasco: “Eu também paguei caro demais por você.

Pode-se, assim, associar o casamento de Áurea e Vasco a este problema financeiro familiar, que pode ter começado após a morte de seu pai – a mãe, D. Maria, veste luto. Tudo isso pode ser inferido a partir da junção dos diálogos, do figurino e do contexto da época.

As duas únicas mulheres do grupo são relegadas aos trabalhos domésticos. A todo tempo, obedecem aos comandos de Vasco. Áurea está no início da gravidez e sua mãe já demonstra preocupação com o estado de saúde de ambos. Nenhuma das duas está satisfeita com a migração, principalmente a jovem. A mudança não foi uma escolha para elas. Nas cenas seguintes, vê-se Áurea e D. Maria planejando uma fuga, notadamente após Vasco ter rompantes agressivos, causados pelo contato com os moradores locais, de uma aldeia quilombola próxima, com os quais há um rápido embate pela terra. Em virtude disso, os demais membros do grupo passam a desconfiar da segurança do local e debandam, deixando Vasco, Áurea e D. Maria sozinhos. Com todo o trabalho ainda por fazer – eles estavam finalizando a construção da casa –, ao perceber que o grupo estava desfeito, Vasco tem um novo rompante agressivo. Mas, desta vez, ele causa um acidente que resulta na sua própria morte (sequencia que começa aos 20min 03seg).

A partir da morte do patriarca, as duas mulheres veem-se completamente isoladas. O filme volta-se, então, para a luta diária de Áurea e D. Maria contra o ambiente hostil e a saudade do conforto da cidade grande. Em um trecho (24min 43seg), a mãe segue um grupo de homens, mas os perde de vista. É ajudada pelas pegadas e por um bando de aves marítimas. Ela, então, encontra a praia, onde está também a aldeia quilombola. D. Maria se vale da natureza (o voo dos pássaros em direção ao mar) para buscar ajuda dos nativos. A relação com estes é reconfigurada. A postura das protagonistas frente ao ambiente é reformulada a cada nova experiência. As personagens femininas ocupam, agora, o centro da trama. Com elas, os indomáveis montes de areia e o tempo, outros dois grandes personagens, ora aliados ora antagonistas.

Leia a terceira parte da análise, clicando AQUI.

Ler a parte 1/4

sábado, 16 de novembro de 2013

Areia e Tempo na Narrativa de uma Vida [1/4]

Tudo começou quando Luiz Carlos Barreto avistou a foto de uma casa parcialmente soterrada pela areia em um bar do Ceará. Curioso, perguntou ao dono do estabelecimento de quem era aquela casa. Ficou sabendo, então, que a antiga moradora passou toda a vida lutando contra a areia e que a casa foi soterrada apenas após a sua morte. A história tocou o produtor, que vislumbrou ali o ponto de partida para uma fábula. Conversou com o diretor Andrucha Waddington a respeito da ideia e, então, os dois chamaram a roteirista Elena Soárez para elaborar o argumento do filme. O roteiro levou dois anos para ser finalizado.


Casa de Areia foi lançado em 2005. Neste e no ano seguinte, participou de importantes festivais de cinema, como Toronto, Berlim e Sundance. Fernanda Montenegro e Fernanda Torres repetem os papéis de mãe e filha nesta ficção. A história conta a saga de Áurea, vivida por Torres, que, conjuntamente com sua mãe, D. Maria, vivida por Montenegro, chegam a um manancial de areia, no Maranhão, levadas por Vasco, marido de sua filha. Este acreditava ter adquirido terras férteis, as quais poderiam lhes dar uma melhor condição financeira. Porém, eles não sabiam que o desconhecido local ficava distante dos centros urbanos e que era um grande labirinto de areia.

Áurea sente-se isolada e presa naquele local inóspito. Grávida, teme que seu filho nasça e cresça ali. Esperançosa de poder mudar seu destino, convence a mãe a ir embora. Inúmeras tentativas de fuga são feitas pelas duas mulheres, que travam verdadeiras batalhas contra o destino. Porém, o sucesso de seus planos de fuga não depende exclusivamente delas. Primeiro, não encontram uma rota rápida e direta para uma cidade próxima – o mar aberto não é propício para uma viagem de barco de pequeno porte. Em seguida, a gravidez de Áurea, em estágio avançado, e a idade de sua mãe, dificultam cada vez mais a mobilidade. O movimento intenso das dunas exige mudanças de comportamento das personagens. O local parece ser o grande empecilho para  a tomada  de  rumo delas. Direta ou indiretamente, o ambiente as obriga a recomeçar. Até que, com o tempo, elas aprendem a conviver com ele e conseguem, consequentemente, apropriar-se de suas vidas. O filme narra, dessa forna, o périplo de uma mulher que, isolada, reconfigura sua vida , dando-lhe novos significados.


O isolamento do local não foi empecilho apenas para as personagens. O filme teve uma produção difícil de ser realizada. A cidade mais próxima dos Lençóis Maranhenses, Santo Amaro, não tinha estrutura para acolher os mais de cem integrantes da equipe. Ela possuía apenas uma pousada e outra ainda sendo construída. A produção teve que arcar com o término da construção da segunda pousada para viabilizar a filmagem.

As dunas também causaram transtornos à produção. Em um mesmo dia, sete jipes quebraram por conta dos solavancos e dos constantes atolamentos na areia. As salas de estúdio, de direção, os camarins tiveram de ser construídos sobre a areia, tendo que enfrentar ventos fortes. O teto da sala de direção desabou numa noite de chuva torrencial, alagando e danificando equipamentos. Mas tais dificuldades já faziam parte do currículo do diretor Andrucha Waddington.


Em 2000, Andrucha rodou o filme Eu Tu Eles no sertão nordestino. A região de ambos os filmes é a mesma, mas o clima é diferente. Por conseguinte, a paisagem também. A fotografia é uma marca das duas obras, mas possui sentidos opostos. No primeiro, a paisagem se sobressai. Há uma explosão de cores características da vegetação e das construções da região. Em Casa de Areia, a fotografia é mais contida. O tom é sóbrio, quase monocromático, principalmente nas cenas iniciais. Ricardo Della Rosa, diretor de fotografia, opta por não destacar a paisagem. Ela é parte integrante da história e não deve sobressair apenas como beleza natural, um lugar exótico.

É também repetido o trabalho conjunto com a roteirista Elena Sóarez e as atrizes Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, esposa e sogra respectivamente. A parceria com a roteirista vem de 1999, com o longa Gêmeas. O feito foi repetido em Eu Tu Eles e também em Casa de Areia. Gêmeas contou, também, com a atuação das duas atrizes. No entanto, elas não contracenaram juntas. Em Casa de Areia, elas interpretam filha e mãe, tal qual na vida real, contracenando juntas pela primeira vez na carreira.

Esta análise detém-se basicamente sobre aspectos do filme que enfatizam o seu caráter poético. As personagens tem pouco diálogo. Diversos elementos são, então, utilizados para dar significado às emoções das diferentes vidas presentes na obra, indo muito além da interpretação artística. Em Casa de Areia, abstrações como o ambiente e o tempo são também personagens. Por isso, a análise debruça-se sobre esses personagens abstratos e as modificações que causam às personagens concretas. A decupagem da abertura e do fim do filme é feita para auxiliar o processo de análise.

Leia a segunda parte da análise, clicando AQUI.

domingo, 10 de novembro de 2013

Como evitar uma biografia não autorizada

Copiando a brilhante ideia de Fábio Flora, proprietário do blog Pasmatório, que eu adoro, resolvi tornar públicos os podres de minha vida. Dessa forma, não corro o risco de vê-la devassada por algum abutre ávido por ganhar dinheiro às custas da intimidade alheia. Eu, no ápice de minha fama, jamais quereria que isso acontecesse. Você não concorda? Se eu fosse Roberto Carlos, Gil, Caetano, Chico e companhia, não perderia mais tempo e faria a mesma coisa. Se alguém lançar uma biografia não autorizada, é só acessar o blog e constatar a inveracidade das falácias gananciosas. Ah, esses dedos ferinos! Mas eles não contavam com a nossa astúcia.

A lista de fatos é cronológica, ou tenta ser -- na medida em que a minha memória permite. Infelizmente, não tenho provas para apresentar. Mas não precisa, já que sou o autor-personagem das minhas próprias aventuras. Não sou louco o suficiente para querer me processar por calúnia e difamação. Algum juiz louco acataria tal ação? Prefiro achar que não. Então, vamos aos "causos".

1. Eu matei um rato afogado

Eu tinha um rato de pelúcia bem pequeno. Não lembro a sua origem, recordo apenas que eu gostava de levá-lo a todo lugar. Todo lugar mesmo. Num dia, fui à Praia dos Frades, em Mar Grande, com minha prima e levei o pequeno roedor. Não contente de fazê-lo apreciar a beleza da praia, decidi que faria bem para o bicho refrescar-se nas águas do mar. Já sabe, né? Deixei-o cair na água. Ele afundou. Como a água dessa praia era turva, dificultava a busca. Ficamos um tempão procurando o orelhudo -- em torno de uma hora --, sem sucesso. Quem disse que tinha salva vidas por perto... O rato havia desaparecido. E nem voltamos ao local nos dias seguintes para ver se o corpo tinha aparecido. Eu afoguei o rato. E minha prima foi cúmplice.


2. Eu dormi com o Fofão

Essa história é tão boboca que sinto um pouco de vergonha em contá-la. Quando criança, eu assistia muito a programas infantis de auditório. Não só o de Xuxa, Angélica, Sérgio Malandro -- sim, eu fazia o glu-glu -- e similares locais era composta a minha infância. Eu também fui fã de Bozo, Topo Gigio e Fofão. Deste último, tenho uma maior recordação, não só por causa do boneco amaldiçoado, mas pelo disco de vinil que ganhei de meu pai. Eu gostei tanto do presente que resolvi dormi com ele (!!!). Não me perguntem porquê fiz isso. Também não sei o motivo que fez meu pai aceitar isso -- neste dia, eu dormi ao seu lado, na cama do casal. É claro, é óbvio, é evidente que o disco amanheceu quebrado. E o que o retardado aqui fez? Abriu o berreiro. Meu pai, um santo, foi na loja e comprou outro. Desta vez, resolvi deixá-lo na prateleira, junto aos outros vinis. Santa inteligência!


 3. Eu deixei Cristina fugir

Eu tive uma lancha motorizada a pilha que se chamava Cristina (nome de fábrica, se é que você me entende). A única possibilidade de diversão com Cristina era colocá-la sobre a água, ligar seu motor e vê-la navegar. Enfim, o que esperar de uma lancha? Meu sonho era ter uma coleção daqueles navios artesanais de madeira, vendidos na praia pelos próprios autores, com as velas de tecido, decoração de conchas. Só que custavam caro e meu pai não comprava de jeito nenhum. Então, contentava-me com minha lancha motorizada, um brinquedo feito para ser brinquedo. Certa vez, minha família foi passar o fim de semana em Cacha Pregos, na ilha de Itaparica, onde a família de minha tia morava. Lá, podíamos escolher entre banhar-se no mar ou no rio. Às vezes, escolhíamos ambos, ficávamos no encontro do rio com o mar, num canal de escoamento da água doce. Foi nesse trecho que eu resolvi fazer Cristina nadar. E a danada nadou muito com suas pilhas novas em folha. Eu a liguei, me descuidei um pouco e não consegui mais alcançá-la. As águas agitadas não me deixaram agarrá-la. Nem os que tentaram conseguiram. Ela passou até por cima de quem estava mergulhando a cabeça na água para refrescar-se um pouco. Era rápida a minha Phelps. A lancha já estava chegando em alto mar quando foi pega por uns pescadores locais, que estavam no local com seu barco. A vantagem de ser criança é esta: os adultos fazem de tudo para te ver feliz novamente.


4. Eu não deixava passar em branco a exploração de menor

Minha mãe era -- aliás, é ainda hoje -- uma fumante compulsiva. Ela fuma, em média, três maços de cigarro por dia. E, como todo bom fumante, era muito, mas muito preguiçosa. Descer para comprar os próprios cigarros era algo que raramente ela fazia. Primeiro, pedia para mim ou para minha irmã. Se estívessemos fazendo algo importante, como estudando, recorria a meu pai. E não adiantava espernear. Tínhamos que descer e comprar na banca de revistas que ficava a poucos metros do prédio. Mas eu não deixava por menos. Ela tinha conta na banca, só comprava fiado para pagar no fim do mês. Então, toda ida minha para comprar cigarros rendia um gasto adicional de chocolate Lollo (quem não gostava?) e uma revista de palavras-cruzadas. Não sei porquê eu curtia bastante fazer as palavras-cruzadas comendo Lollo. Não podia ser outra combinação. Porém, um dia, minha farra foi descoberta. A conta deu muito alta e minha mãe nos proibiu de pegar itens adicionais em seu nome. Demo-nos mal. Continuamos comprando cigarros, agora sem ter nenhuma vantagem. Mas a farra foi boa enquanto durou.


5. Eu vendia revistas mal conservadas

Meu pai fez assinatura da revista em quadrinhos Turma da Mônica para mim e minha irmã. Todos nós lá em casa, inclusive ele, adorávamos a revista. E o problema que ocorre com todos que tem assinatura de uma revista também ocorria conosco: o que fazer com todos aqueles exemplares antigos. Bem, eu, minha irmã e mais alguns amigos do prédio tivemos uma ideia brilhante. Ao invés de jogar fora, revendíamos as revistas. Íamos até a calçada em frente ao prédio e oferecíamos as revistas a quem estivesse por ali. Ao lado do edifício, tinha uma padaria e uma farmácia e, logo em frente, um bar. Portanto, sempre tinham potenciais clientes. E não importava o grau de conservação. Bastava que a capa estivesse em boas condições. Espertinhos, não? Confesso que muitos compravam só de achar engraçada a abordagem dos 'vendedores'. E o que fazíamos com o dinheiro arrecadado? Não lembro. Mas, com certeza, gastávamos com alguma bobagem.


6. Eu estuprava a amiguinha

Eu juro. A culpa não era minha. Olhe só a foto abaixo. Qual homem em plena puberdade resistiria? Uma boneca do tamanho de uma criança de 8 anos sabia muito bem o que estava fazendo, não é mesmo? Uma saia curta dessas provoca os instintos mais primários nos homens. Chegar todo dia e ver as coxinhas grossas da amiguinha... a carne é fraca, gente. Macho como eu não resiste. De fato, eu deveria entrar com um processo contra essa criatura, por ter me tentado, por ter provocado o ato. A boneca periguete da Estrela, ela iniciou-me no mundo dos prazeres do sexo. Só não era versátil -- carrinho de mão era a única posição que ela fazia. Que horror.

#ironia


7. Eu tomava água da torneira

Isso é muito comum, eu sei. Afinal, quem gostava de deixar a brincadeira, subir escadas e ir em casa tomar água filtrada? Nenhum minuto podia ser perdido. Então, eu saciava a sede ali mesmo, na garagem do prédio. Abria uma torneira, utilizada para lavar os carros e os playgrounds, formava uma conchinha com as mãos e... pronto. O problema estava resolvido. Era só fazer exame de fezes uma vez por ano, tomar um remédio contra vermes e tudo voltava ao que era antes.



8. Eu brincava com um amigo no escuro do quarto

Não direi o nome do Santo. Não adianta insistir. Vai que o cara, hoje casado e com filhos, lê e se revolta comigo... Mas vou contar a história. Eu tinha um amiguinho -- e esse não era boneco da estrela -- que brincava muito comigo. Nós frequentávamos a casa um do outro. Podia dizer que se tratava do meu melhor amigo na época. Uma das brincadeiras que gostávamos muito era ir para o quarto, meu ou dele, fechar e trancar a porta, desligar a luz e ficar de esfregação -- masturbação através do roçar dos corpos. Rolavam uns beijos também, bem tímidos. Às vezes, fazíamos isso enquanto nossos pais estavam em casa. Nossa relação era apenas de amizade, não havia nenhum outro sentimento. Não pretendíamos viver além daquilo, até por que não sabíamos do que se tratava. Toda brincadeira tem começo e fim. E ela podia começar e terminar quantas vezes quiséssemos, sem problema algum. Não sei ao certo como nem quem começou aquela brincadeira. Só sei que é algo natural para a idade, período da adolescência. Muitos homens passam por essa experiência e nunca revelam. Um dia, um outro amigo do prédio também participou. Ele era mais velho e, portanto, tinha um preconceito já consolidado. Lembro perfeitamente que ele disse, após a diversão, que não repetiria para não acabar gostando daquilo. Bobinho. Podia ter se divertido muito mais.

Não só do sexo oposto temos curiosidades

9. Eu nunca levei namorada para casa

Pode falar o que quiser sobre a minha puberdade, na qual passei em sua totalidade no armário. Chamem-no guarda-roupa, gaveta, caixa de boneca, baú, sótão ou mausoléu. Tudo bem. Mas nunca diga que eu levei uma garota, hetero, bi ou lésbica, para apresentar a meus pais. Nunca tentei enganá-los. Nunca passou por minha cabeça fazer o que alguns amigos da época faziam. E olhe que uma conhecida lésbica um dia se ofereceu para ir comigo à faculdade de mãos dadas -- eu tinha dezoito anos -- e eu recusei. A ideia de fingir um relacionamento, de ludibriar uma menina ou mesmo de tentar me enganar, não me agradava. Tudo o que me faltava era coragem para ligar o foda-se e viver minha vida.



Fim da lista de minhas peripécias. Pelo menos, de algumas delas. E aí, diga a verdade, alguém conseguiria me difamar melhor?