quinta-feira, 23 de maio de 2013

[Debates #1] Cultura x Arte

Semestre passado, eu cursei a disciplina Estudos das Culturas, com o professor Carlos Alberto Bonfim. Ela é uma disciplina obrigatória do currículo de Humanidades. Porém, foi possível cursá-la graças à obrigatoriedade de cumprir duas disciplinas humanísticas, um dos aspectos que definem a interdisciplinaridade dos cursos do IHAC (Instituto de Humanidades, Artes e Ciências), da UFBA. A metodologia aplicada à disciplina consistia em discutir temas diferentes em cada aula, tais como sexualidade, juventude, drogas, música e interculturalismo. Como avaliação, tive que promover três debates e um artigo final, abordando algum ponto dos temas debatidos em sala. Como resultados, publiquei no blog "A Cultura do Vazio". Agora, disponibilizo os debates, todos eles ocorridos na empresa em que trabalho, com a participação de colegas*.


O primeiro debate ocorreu em 19 de dezembro de 2012. O tema escolhido foi "Conceito de Cultura". Iniciei o debate solicitando aos participantes que escrevessem numa folha de papel o conceito de Cultura e depois o lessem em voz alta, podendo, neste momento, incrementá-lo. Dois deles me chamaram mais a atenção: um remetia ao conceito tradicional de Cultura, tal qual me foi ensinado no primeiro grau (atual ensino fundamental), como “um conjunto de tradições, costumes passados e construídos por determinada comunidade ao longo de sua cronologia”; o outro associava a Cultura a práticas (tidas consensualmente) da arte, como “qualquer forma de expressão artística da sociedade”. Em seguida, pedi que eles falassem sobre a origem de seu conceito e como ele foi formado. Diversos pontos merecem destaque, até adentrarmos na discussão sobre o limiar entre Arte e Cultura.

Ana  afirmou que a origem de seu conceito surgiu de sua percepção de que a formação cultural do indivíduo vem da instrução (educação formal), da educação familiar, responsável pela formação do caráter, e da relação com a comunidade em que vivemos. Indaguei se eles seriam núcleos individuais, sem interação entre si, e ela respondeu que uma pessoa que não tem família – tive a impressão de se tratar de conceito mais tradicional de família – não necessariamente não terá cultura, pois terá os demais elementos para contribuir para sua formação. Esse complemento reforçou a ideia de que não há, ou há muito pouca, interação entre esses núcleos formadores da cultura no indivíduo, sendo ele responsável apenas por absorver as informações de cada um e construir sua identidade. Além disso, ficou a dúvida, após rever o debate, se tal indivíduo ficaria desprovido de caráter ou se seria mais vulnerável a não tê-lo por não ter tido a “formação cultural familiar”.

Roberto reafirmou que entende Cultura como uma manifestação individual, podendo uma pessoa participar de uma ou mais culturas (sic) diferentes e citou, como exemplo, a culinária. Sendo assim, ela surge sempre do indivíduo para o coletivo. Lívia ressaltou que “apesar de ouvir muito que música, teatro e outras expressões artísticas são cultura, ainda não tinha parado para pensar numa definição”. Notei, por essas duas últimas explanações, que o conceito estava bastante atrelado ao produto de manifestações públicas, sendo estes citados constantemente durante o debate. Tendo sido as expressões artísticas o alvo de vários exemplos, a discussão tomou o rumo, decidido naturalmente pelos participantes, da diferença entre Arte e Cultura, sempre evidenciando uma (des)qualificação dos elementos a partir de seu 'conteúdo'.

“No artístico, há um limiar entre o que é entretenimento e o que é cultura”. A ideia foi complementada com dois exemplos: músicas produzidas na Bahia, nas quais “não se vê conteúdo” e com o argumento de que existe “diversão sem conteúdo”; e “peças de teatro que fazem rir com o fácil, com o banal”, salientando que não se tratava de falta de cultura (sic), pois referia-se àquela obra enquanto arte. Vê-se uma confusão entre os conceitos de cultura e arte, sendo a última qualificada como algo superior, detentora de um 'conteúdo intelectual' produzido por um indivíduo 'bem educado'. Perguntei a todos se arte necessariamente precisa ter um conteúdo. Neste momento, lancei a diferença entre Cultura e Arte de Teixeira Coelho, para o qual eles são opostos complementares: cultura é a regra, a arte é a exceção.

Neste momento, também, dirigi-me ao computador, e exibi a imagem de uma das obras mais conhecidas do mundo: o quadro Mona Lisa, de Leonardo Da Vinci. Em seguida, provoquei os participantes, indagando se se tratava de uma obra de arte. Houve um silêncio momentâneo, pois todos analisavam a obra utilizando o conceito anteriormente passado. Por isso, não consegui obter a resposta original para a provocação. No entanto, criei neles uma reflexão. Mesmo tendo afirmado existir diversos outros conceitos de arte, os participantes fixaram-se no conceito transmitido, alterando de imediato a sua opinião. Então, complementei: como podemos considerar a Mona Lisa como obra de arte (ou não) sem conhecer o contexto em que foi produzida? Imediatamente responderam que, agora, usavam o conceito de arte que eu havia passado, que na época em que foi elaborado o quadro poderia ter sido considerado uma obra de arte, mas que já não representa mais. Diante a inflexibilidade no uso do conceito, tentei buscar o motivo para considerarmos, de uma forma geral, no senso comum, a Mona Lisa como uma obra de arte. Eis o ponto crucial do debate.
  • Diversas respostas mostraram como o conceito de arte foi desenvolvido:
  • Pela história do autor, disse um colega.
  • Porque alguém estudou sobre isso e disse...
  • Porque ela vai estar num “museu de arte”, disse outro.
  • É uma convenção, emendou.
  • Porque pagaram não sei quantos milhões nessa obra, disse outra, por último.
Levantei, então, a questão de quem seria A Gioconda, de qual foi o intuito da pintura, “uma mera encomenda?”. Expliquei que naquela época a aristocracia costumava encomendar quadros aos pintores famosos para retratá-los fielmente, mostrar e ostentar sua posição social. Não poderia ter sido este o intuito? Sendo assim, o quadro pode ter passado anos pendurado numa parede. Por que considerá-lo um expoente da Arte tempos depois?

As respostas dadas pelos participantes à minha provocação refletem a origem cultural do conceito de Arte, não podendo distanciá-la, portanto, da Cultura. Pelo contrário, considero Arte como produto da Cultura. Ao perpetuarmos as considerações de especialistas da arte, críticos ou historiadores, e homologarmos as suas instituições (museus, galerias, etc) e o seu mercado, utilizamos aspectos culturais criados com o passar do tempo para defini-la. E, assim, continuamos repetindo tais convenções sem questioná-las, sem buscar sua origem. Com isso, também, refletindo a divisão sócio-econômica típica da época atual, tendemos a hierarquizar os produtos simbólicos. Não nos contentamos em criticar seu conteúdo, duvidando da sua 'qualidade' – direito inquestionável, vale ressaltar, pois ninguém é obrigado a gostar de tudo que se produz –, mas construímos subcategorias e lá depositamos os produtos 'abaixo da média'.

Obra "A Fonte", de Marcel Duchamp

 Apresentei, então, a obra A Fonte, de Duchamp, e expliquei a sua representatividade, seu significado para a Arte. Indiquei que, para a ruptura obtida pelo movimento artístico, uma obra não precisa estar envolta de significados, mas de sensações. A cultura costuma nos dizer o que é e o que não é arte; nos dizer o que é ou o que não é uma obra-prima. No entanto, a obra, enquanto produto simbólico, só existe devido à interação entre o autor e o observador. Ambos são responsáveis por significar os objetos, ambos fazendo parte, portanto, do processo de criação, que é ininterrupto. A obra tem, dessa forma, uma criação coletiva. É um produto da Cultura.

* Todos os participantes autorizaram o compartilhamento do debate em vídeo.


domingo, 19 de maio de 2013

[Curtas #2] Minha vida de João

Desenho animado de 20 minutos, dividido em duas partes, que põe em questão a educação sexista. A história gira em torno da história de vida do menino João. Logo de imediato, vê-se a influência machista no ambiente familiar, reforçada também na socialização externa. O que ele vê, ouve e vivencia serve de aprendizado, um modelo a ser seguido. Por diversas vezes, o curso da vida de João sofre interferências. Um lápis aparece para mostrar-lhe o que deve fazer enquanto "homem". Mas quem empunha o lápis? Propositalmente, o vídeo não nos mostra, indicando que nós, direta ou indiretamente, somos os agentes responsáveis pela definição da relação de poder entre os gêneros, limitada à dualidade homem e mulher. Assista ao vídeo e reflita. Recorde momentos de sua vida, nos quais sofreu ou foi agente de sexismo. E, principalmente, mude, mesmo que você possa ser o único em sua rede de amizade a tomar esta atitude. A sociedade agradece.




sexta-feira, 10 de maio de 2013

Memórias e trajetórias de leitura

Minha memória nunca foi boa. Em relação à leitura então, nem se fala. Estou entre os brasileiros que leem 2,1 livros integralmente por ano, segundo dados da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, encomendada pelo Instituto Pró-Livro (IPL) ao Ibope Inteligência, de novembro de 2011. Lembro que tínhamos, eu e minha irmã, a coleção completa de Monteiro Lobato. Não sei qual a sua procedência, quem nos presenteou. Recordo apenas de algumas figuras vistas nos livros, especialmente da do minotauro. Se não fosse "O Sítio do Pica-pau Amarelo", da TVE, conheceria aqueles marcantes personagens somente através de conversas com amigos.

De fato, nunca tivemos grande incentivo para a leitura lá em casa. Incentivar leitura vai muito além de dar livros a uma criança. Meus pais também não tinham esse hábito: recordo vagamente de vê-los ler um livro ou uma revista. Herança maldita. Talvez por isso, hoje eu tenha dificuldade de concentração e leia com lentidão.

Retirada de blog Wdicas

Quando criança, costumava comprar fiado revistas de jogos de palavras (cruzadas, por exemplo) numa banca próxima que minha mãe tinha conta, sempre acompanhadas de um chocolate Lollo. Adorava comê-lo enquanto preenchia os jogos. Este hábito teve fim quando minha mãe recebeu a conta mensal da banca de revistas e não gostou nadinha. Lembro também de comprar revistas de anedotas, algumas bem picantes, e em quadrinhos, especialmente Turma da Mônica. Nunca gostei de Tio Patinhas, Zeca Carioca e companhia. Para minha prima, 5 anos mais nova, costumava ler histórias infantis. Gostava de ler os diálogos, incutindo teor dramático à narrativa e dando tom e formas diferentes aos diálogos. Recriava as histórias e os personagens. Um toque pessoal. 

Mais tarde, no colégio, através das aulas de Literatura, apaixonei-me por versos de Fernando Pessoa e outros poetas existencialistas. Aventurei-me no ramo e escrevi alguns poemas aos 17 e 18 anos de idade. Um deles, inclusive, publiquei aqui no blog. Apesar desse gosto pela poesia, nunca fui afeito a livros, principalmente os romances que a professora pedia para ler. Sempre os achava chatos. Na verdade, eu tinha dificuldade para entendê-los. Faltava melhor contextualização da época. Faltava, sobretudo, o ensino da leitura. Uma análise crítica dos romances viria a calhar, não apenas a identificação de características do movimento literária ao qual pertencia.

O fato é que interrompi minha carreira de poeta devido ao vestibular e à faculdade de Computação, que dizem até hoje ser da área de exatas. Atualmente, com o intuito de compensar o tempo perdido, tenho lido mais e, com isso, aumentado ainda mais minha curiosidade. A faculdade de Artes, na UFBA, tem me ajudado bastante neste processo. E, por isso, fico me perguntando por quê cargas d'água exatas, e não humanas, foi a minha área escolhida aos 18 anos. Ah, maldita pressão social que obriga os jovens a decidir tão prematuramente o que fará nos muitos e longos anos seguintes...

quarta-feira, 1 de maio de 2013

O Homem Visível

Foi ontem, último dia do mês de abril, por volta de 22 horas. Peguei um ônibus Barra-3 na Avenida Manoel Dias da Silva para, enfim, ir para casa e descansar do trabalho extenuante daquela noite. Eu guardava o troco do cobrador, após passar a roleta. O ônibus havia parado no ponto em frente ao Bradesco. Entre usuários do transporte que desciam do carro e alguns que ainda aguardavam no ponto, uma pessoa caminhava vagarosamente atrás do abrigo, em direção à esquina, para atravessar a rua. Era um morador de rua. Vestia farrapos que cobriam apenas seu tronco. Mesmo sujos e surrados, os tecidos organizavam-se de forma a indicar um estilo, uma criação particular. Abaixo da cintura, apenas a roupa íntima. Na cabeça que reluzia a luz dos fortes refletores da avenida, uma passadeira como acessório. No caminhar, uma marca. Uma jovem, sentada próxima ao cobrador, esbugalha os olhos, inclina-se para ter um melhor ângulo e deixa escapar voluntariamente uma interjeição de surpresa. Foi um convite para o meu olhar dirigir-se à cena externa. Um outro passageiro, sentado mais à frente, ergue o braço e, dedo indicador em riste, sorriso estampado no rosto, mostra ao amigo com o qual conversava, que pergunta de imediato: "É mulher?". "Não. É homem. (pausa) É um velho.", responde o atento observador. Outro coloca a cabeça na janela e grita: "Xuxa". Enquanto isso, no mesmo cenário, um outro morador de rua dormia, envolto em lençóis, aparentemente tranquilo e totalmente invisível.