terça-feira, 26 de novembro de 2013

Areia e Tempo na Narrativa de uma Vida [3/4]

Ler parte 2/4

A narrativa caracteriza-se por não explicitar, de forma banal, a história, deixando-a sempre imprevisível. A passagem do tempo segue a mesma lógica. Por estar em um local ermo, hostil, as personagens não utilizam relógios. A distância entre dois locais é medida em dias de caminhada. Assim, diversos símbolos são utilizados para situar o espectador no tempo. Apenas dois deles comunicam claramente uma data. Na maioria das vezes, as imagens jogavam com referências que necessitavam da atenção e da análise do observador. A percepção semiótica do espectador é aguçada a todo instante. A seguir, diversos elementos imagéticos – complementados posteriormente por parcos diálogos – utilizados no filme para denotar tempo são analisados.

Os marcos temporais

A caravana

 A segunda tomada do filme pode, de imediato, não informar muito sobre o tempo, mas dá pistas. Um olhar mais atento pode capturar detalhes preciosos. Por exemplo, não há veículos motorizados na caravana. Com certeza, esta não foi uma escolha de Vasco. Carros capazes de atravessar dunas de areia ainda não haviam sido inventados. O grupo teve, então, de locomover seus pertences em jumentos e carroças.

Definindo espaço e tempo

Ao fim do plano atravessado pela caravana, um letreiro situa explicitamente o espectador no espaço e no tempo. A história inicia-se em 1910, no Maranhão, nordeste brasileiro.

A primeira mudança da paisagem

Ao encontrar o terreno que comprara, Vasco demonstra ter esperança de, um dia, nele abundar água. Ele e os demais integrantes do grupo firmam acampamento e iniciam a construção de uma casa. Aos 38min 06seg, um plano geral mostra a casa envolta em nova paisagem. De repente, tudo ao redor é alterado. A casa está quase ilhada, rodeada por uma grande lagoa. As dunas, atrás, mostram que a areia também se movimentou, formando um novo desenho. Aparece também, no topo da colina, o mercador, que passa pelo local uma vez ao ano. Dessa forma, o filme sugere a passagem do tempo.

A segunda mudança da paisagem

A casa, antes rodeada de água, está escorada a uma parede de areia. Novamente, a paisagem modificada sinaliza a passagem do tempo e a alteração de rumo na vida das personagens. Vê-se, no alto, da montanha de areia, uma criança. É Maria, filha de Áurea, nascida e já crescida. O plano geral dá lugar ao plano médio, que mostra a criança descendo a duna em direção à casa quase soterrada. Posteriormente, as dunas invadem a casa e matam D. Maria, que dormia.

O eclipse

O uso de fatos históricos é outro recurso da narrativa para situar o espectador no tempo. O eclipse solar ocorrido em 1919 aparece no filme. Nos planos que compõem o trecho a partir dos 51min 08seg, Áurea percebe que o sol está sendo encoberto, tudo está escurecendo. Então, volta o olhar para o céu e vislumbra o eclipse. Mas o que seria apenas recurso temporal acaba por também fazer parte da trama. Isso porque uma expedição de cientistas adentra as dunas à procura do lugar ideal para registrar em fotos o fenômeno natural.

Áurea segue os rastros deixados na areia pela expedição de cientistas e conhece um soldado que os escoltava até o local. Ela tem uma relação amorosa com o recruta. Então, pede-lhe que siga com os cientistas. O soldado pede autorização dos cientistas, que a concedem. Áurea informa que precisa buscar a mãe e a filha que ficaram em casa, há dois dias a pé dali. No entanto, ao retornar, encontra a casa soterrada. A mãe fora encoberta pela areia enquanto dormia. A filha, Maria, sobrevive.

O marco geodésico

A morte da mãe atrasa Áurea. Quando ela retorna ao local onde acampou a expedição de cientistas, com a filha, não há mais ninguém. Mais um plano de fuga é frustrado. Desta vez, vê-se a data exata do eclipse solar, 19 maio de 1919, grafado no marco geodésico. É informado, mais uma vez, de forma explícita, o período no qual a trama se encontra. Agora, é possível calcular a idade de Maria. A mãe, que chegou grávida em 1910, agora possui uma filha com, aproximadamente, 8 anos de idade.

Os aviões de guerra

Aos 1h 18min 45seg, um grupo de aviões de guerra – provavelmente um esquadrão – é avistado no céu. Abaixo deles, caminhando pela areia, vê-se uma pessoa. Há um corte e o plano muda para médio, exibindo Maria, já adulta, com caminhar errante, segurando uma garrafa de bebida alcoólica. Dá para diferenciar as personagens interpretadas por Fernanda Torres pelo caminhar e pelo vestido, agora despojado, mais condizente com o clima do local. Nota-se que esta pessoa não tem amarras com os costumes morais da época, presente nos centros urbanos. Ela nasceu e foi educada ali. Portanto, não se trata de Áurea, mas de Maria.

Mais tarde, aos 1h 23min 59seg, o trecho mostra Maria encontrando o corpo de um piloto na praia. O avião em que ele estava fora provavelmente atingido, causando sua queda. Esses símbolos estão associados à Segunda Guerra Mundial, da qual o Brasil participou ao lado das forças aliadas. A costa brasileira foi alvo de ataques alemães. O filme sugere, então, que a narrativa situa-se agora na década de 40.

O acesso por carro

O soldado que escoltara a expedição de cientistas em 1919 retorna ao local. Desta vez, ele é designado para recuperar o corpo do piloto. O acesso é feito por um jipe, diferentemente do que fizeram com os cientistas. Mostra-se, com isso, que os carros foram aprimorados para chegar a lugares de difícil acesso. A guerra está a todo vapor. Enquanto isso, nos EUA, o capitalismo se desenvolve sem amarras. O país só participa do fim da segunda guerra, sofrendo menos impacto econômico que os países que lutaram desde o início. O fordismo se destaca como modelo industrial e esta empresa lidera a produção mundial de carros.

A maquiagem e o figurino

A última sequencia do filme é o maior exemplo de utilização da maquiagem como recurso de tempo. As duas personagens que dialogam na mesma cena são interpretadas por Fernanda Montenegro. Neste momento, a diferença de idade é marcadamente expressa não só no andar e na voz (interpretação), mas também no rosto e no cabelo das personagens.

O figurino também auxilia a demarcação do tempo. No início do filme, mãe e filha vestem trajes do início do século XX. Quase não se via o corpo da mulher. No meio do filme, as personagens aparecem com roupas mais leves, improvisadas, desatando as amarras estilísticas da época, ditadas pelos centros urbanos. Na última sequencia do filme, Maria está vestida com trajes característicos da década de 70. Aproximadamente trinta anos se passaram. Ela foi para a cidade com o soldado, a pedido de Áurea, e agora retorna ao labirinto de areia para visitar sua mãe. O contraste entre duas vidas, entre duas gerações é nítido, mas também o é o elo que as une.

Na próxima e última parte desta análise, será abordado o 'psicológico' das personagens. O trecho final é esmiuçado para ilustrar a mudança comportamental das protagonistas e sua relação com o ambiente que as cerca.

Leia a última parte da análise, clicando AQUI.

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