quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

#NossaFamíliaExiste

Recebi o e-mail da campanha #NossaFamíliaExiste e não resisti a encaminhá-lo.

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Documentário mostra natal de crianças com pais homossexuais

A ação organizada contra o retrocesso ao reconhecimento do Estado das famílias compostas por duas pessoas do mesmo sexo está nas ruas desde 2012 e lança agora um vídeo para quebrar todos os preconceitos que giram em torno de casais de gays e lésbicas. Clique e assista ao documentário!
 NossaFamiliaExiste - CurtaFinal MadMIMI
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A campanha começou com fotos de casais e seus filhos com a temática do natal e agora já viralizou nas redes e comoveu milhares de pessoas em torno da causa. O objetivo final é a mudança no texto do Estatuto da Família e o reconhecimento de famílias que saiam do "padrão" homem, mulher e filhos."
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ENTENDA O CASO

Desde maio de 2013 casais homoafetivos já podem se casar em todo território nacional. O Supremo Tribunal Federal (a mais alta instância da justiça do país) já decidiu que casais compostos por duas pessoas do mesmo sexo são entidades familiares. Dezenas de casais formados por dois homens ou duas mulheres já adotaram dezenas de crianças ou tiveram seus filhos por métodos de reprodução assistida.
Isso sem contar os muitos casais com filhos frutos de outros relacionamentos. Contudo, está em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei 6583/13, conhecido pelo irônico nome de “Estatuto da Família”. O objetivo do Projeto de Lei é retroceder em relação ao reconhecimento do Estado Brasileiro das famílias compostas por duas pessoas do mesmo sexo. O autor da proposta ainda estuda a possibilidade de inserir no texto um artigo que retire dos casais homoafetivos o direito que eles já possuem de adotarem seus filhos.

A CAMPANHA

O #NossaFamíliaExiste tem como objetivo "mostrar que as famílias homoafetivas existem, são entidades familiares como qualquer outra", descrito no texto-manifesto publicado nas redes sociais. Para isso, utiliza a simbologia do natal e pede para que todos postem nas suas redes uma foto com plaquinhas de reinvidicação ao lado das árvores natalinas e dos familiares.
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PARTICIPE

O convite é para que todos postemos nas redes sociais uma foto de sua família segurando um papel com a Hastag da campanha #NossaFamíliaExiste. Depois de feita a foto é só postar nas redes e usar a hastag da campanha.Também vale postar um breve vídeo de celular de sua família. Vamos mostrar ao congresso nacional que não aceitamos nenhum retrocesso na nossa luta por um país mais justo e igualitário para todos e todas.
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©2014 Nossa Família Existe | euapoio@casamentociviligualitario.com.br

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Obscenidades para uma dona-de-casa

Precisando de uma chacoalhada? Ignácio de Loyola Brandão te ajuda.

Três da tarde ainda, ficava ansiosa. Andava para lá, entrava na cozinha, preparava nescafé. Ligava televisão, desligava, abria o livro. Regava a planta já regada, girava a agenda telefônica, à procura de amiga a quem chamar. Apanhava o litro de martíni, desistia, é estranho beber sozinha às três e meia da tarde. Podem achar que você é alcoólatra. Abria gavetas, arrumava calcinhas e sutiãs arrumados. Fiscalizava as meias do marido, nenhuma precisando remendo. Jamais havia meias em mau estado, ela se esquecia que ele é neurótico por meias, ao menor sinal de esgarçamento, joga fora. Nem dá aos empregados do prédio, atira no lixo.

Quatro horas, vontade de descer, perguntar se o carteiro chegou, às vezes vem mais cedo. Por que há de vir? Melhor esperar, pode despertar desconfiança. Porteiros sempre se metem na vida dos outros, qualquer situação que não pareça normal, ficam de orelha em pé. Então, ele passará a atenção no que o carteiro está trazendo de especial para a mulher do 91 perguntar tanto, com uma cara lambida. Ah, aquela não me engana! Desistiu. Quanto tempo falta para ele chegar? Ela não gostava de coisas fora do normal, instituiu sua vida dentro de um esquema nunca desobedecido, pautara o cotidiano dentro da rotina sem sobressaltos. Senão, seria muito difícil viver. Cada vez que o trem saía da linha, era um sofrimento, ela mergulhava na depressão. Inconsolável, nem pulseiras e brincos, presentes que o marido trazia, atenuavam.

Na fossa, rondava como fera enjaulada, querendo se atirar do nono andar. Que desgraça se armaria. O que não diriam a respeito de sua vida. Iam comentar que foi por um amante. Pelo marido infiel. Encontrariam ligações com alguma mulher, o que provocava nela o maior horror. Não disseram que a desquitada do 56 descia para se encontrar com o manobrista, nos carros da garagem? Apenas por isso não se estatelava alegremente lá embaixo, acabando com tudo.

Quase cinco. E se o carteiro atrasar? Meu deus, faltam dez minutos. Quem sabe ela possa descer, dar uma olhadela na vitrine da butique da esquina, voltar como quem não quer nada, ver se a carta já chegou. O que dirá hoje? Os bicos dos teus seios saltam desses mamilos marrons procurando a minha boca enlouquecida. Ficava excitada só em pensar. A cada dia as cartas ficam mais abusadas, entronas, era alguém que escrevia bem, sabia colocar as coisas. Dia sim, dia não, o carteiro trazia o envelope amarelo, com tarja marrom, papel fino, de bom gosto. Discreto, contrastava com as frases. Que loucura, ela jamais imaginara situações assim, será que existiam? Se o marido, algum dia, tivesse proposto um décimo daquilo, teria pulado da cama, vestido a roupa e voltado para casa da mãe. Que era o único lugar para onde poderia voltar, saíra de casa para se casar. Bem, para falar a verdade, não teria voltado. Porque a mãe iria perguntar, ela teria que responder com honestidade. A mãe diria ao pai, para se desabafar. O pai, por sua vez, deixaria escapar no bar da esquina, entre amigos. E homem, sabe-se como é, é aproveitador, não deixa escapar ocasião de humilhar a mulher, desprezar, pisar em cima.

As amigas da mãe discutiriam o episódio e a condenariam. Aquelas mulheres tinham caras terríveis. Ligou outra vez a tevê, programa feminino ensinando a fazer cerâmica. Lembrou-se que uma das cartas tinha um postal com cenas da vida etrusca, uma sujeira inominável, o homem de pé atrás da mulher, aquela coisa enorme no meio das pernas dela. Como podia ser tão grande? Rasgou em mil pedaços, pôs fogo em cima do cinzeiro, jogou tudo na privada. O que pensavam que ela era? Por que mandavam tais cartas, cheias de palavras que ela não ousava pensar, preferia não conhecer, quanto mais dizer. Uma vez, o marido tinha dito, resfolegante, no seu ouvido, logo depois de casada, minha linda bocetinha. E ela esfriou completamente, ficou dois meses sem gozar.

Nem dizia gozar, usava ter prazer, atingir o orgasmo. Ficou louca da vida no chá de cozinha de uma amiga, as meninas brincando, morriam de rir quando ouviam a palavra orgasmo. Gritavam: como pode uma palavra tão feia para uma coisa tão gostosa? Que grosseria tinha sido aquele chá, a amiga nua no meio da sala, porque tinha perdido no jogo de adivinhação dos presentes. E as outras rindo e comentando tamanhos, posições, jeitos, poses, quantas vezes. Mulher, quando quer, sabe ser pior do que homem. Sim, só que conhecia muitas daquelas amigas, diziam mas não faziam, era tudo da boca para fora. A tua boca engolindo inteiro o meu cacete e o meu creme descendo pela tua garganta, para te lubrificar inteira. Que nojenta foi aquela carta, ela nem acreditava, até encontrou uma palavra engraçada, inominável. Ah, as amigas fingiam, sabia que uma delas era fria, o marido corria como louco atrás de outras, gastava todo o salário nas casas de massagens, em motéis. E aquela carta que ele tinha proposto que se encontrassem uma tarde no motel? Num quarto cheio de espelhos, para que você veja como trepo gostoso em você, enfiando meu pau bem no fundo. Perdeu completamente a vergonha, dizer isso na minha cara, que mulher casada não se sentiria pisada, desgostosa com uma linguagem destas, um desconhecido a julgá-la puta, sem nada a fazer em casa, pronta para sair rumo a motéis de beira de estrada. Para que lado ficam?

Vai ver, um dos amigos de meu marido, homem não pode ver mulher, fica excitado e é capaz de trair o amigo apenas por uma trepada. Vejam o que estou dizendo, trepada, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Caiu em si raciocinando se não seria alguém a mando do próprio marido, para averiguar se ela era acessível a uma cantada. Meu deus, o que digo? Fico transtornada com estas cartas que chegam religiosamente, é até pecado falar em religião, misturar com um assunto deste, escabroso. E se um dia o marido vier mais cedo para casa, apanhar uma das cartas, querer saber? Qual pode ser a reação de um homem de verdade, que se preze, ao ver que a mulher está recebendo bilhetes de um estranho? Que fala em coxas úmidas como a seiva que sai de você e que eu provoquei com meus beijos e com este pau que você suga furiosamente cada vez que nos encontramos, como ontem à noite, em pleno táxi, nem se importou com o chofer que se masturbava. Sua louca, por que está guardando as cartas no fundo daquela cesta? A cesta foi a firma que mandou num antigo natal, com frutas, vinhos, doces, champanhe. A carta dizia deixo champanhe gelada escorrer nos pêlos da tua bocetinha e tomo em baixo com aquele teu gosto bom. Porcaria, deixar champanhe escorrer pelas partes da gente. Claro, não há mal, sou mulher limpa, de banho diário, dois ou três no calor. Fresquinha, cheia de desodorante, lavanda, colônia. Coisa que sempre gostei foi cheirar bem, estar de banho tomado. Sou mulher limpa. No entanto, me pediu na carta: não se esfregue desse jeito, deixe o cheiro natural, é o teu cheiro que quero sentir, porque ele me deixa louco, pau duro. Repete essa palavra que não uso. Nem pau, nem pinto, cacete, caralho, mandioca, pica, piça, piaba, pincel, pimba, pila, careca, bilola, banana, vara, trouxa, trabuco, traíra, teca, sulapa, sarsarugo, seringa, manjuba.

Nenhuma. Expressões baixas. A ele, não se dá nenhuma denominação. Deve ser sentido, não nomeado. Tem gente que adora falar, gritar obscenidades, assim é que se excitam, aposto que procuram nos dicionários, para encontrar o maior número de palavras. Os homens são animais, não sabem curtir o amor gostoso, quieto, tranqüilo, sem gritos, o amor que cai sobre a gente como a lua em noite de junho. Assim eram os versinhos no almanaque que a farmácia deu como brinde, no dia dos namorados. Tirou o disco da Bethânia, comprou um LP só por causa de uma música, Negue. Ouvia até o disco rachar, adorava aquela frase, a boca molhada ainda marcada pelo beijo seu. Boca marcada, corpo manchado com chupadas que deixam marcas pretas na pele. Coisas de amantes. Esse homem da carta deve saber muito. Um atleta sexual. Minha amiga Marjori falou de um artista da televisão. Podia ficar quantas horas quisesse na mulher. Tirava, punha, virava, repunha, revirava, inventava, as mulheres tresloucadas por ele. Onde Marjori achou estas besteiras, ela não conhece ninguém de tevê?

Interessa é que a gente assim se diverte. Se bem que se possa divertir, sem precisar se sujeitar a certas coisas. Dessas que a mulher se vê obrigada, para contentar o marido e ele não vá procurar outras. Que diabo, mulher tem que se impor! Que pensam que somos para nos utilizarem? Como se fôssemos aparelhos de barba, com gilete descartável. Um instrumento prático para o dia-a-dia, com hora certa! Como os homens conseguem fazer barba diariamente, na mesma hora? Nunca mudam. Todos os dias raspando, os gestos eternos. É a impressão que tenho quando entro no banheiro e vejo meu marido fazendo a barba. Há quinze anos, ele começa pelo lado direito, o esquerdo, deixa o queixo para o fim, apara o bigode. Rio muito quando olho o bigode. Não posso esquecer um dia que os pelinhos do bigode me rasparam, ele estava com a cabeça entre as minhas pernas, brincando. Vinha subindo, fechei as pernas, não vou deixar fazer porcarias deste tipo. Quem pensa que sou? Os homens experimentam, se a mulher deixa, vão dizer que sou da vida. Puta, dizem puta, mas é palavra que me desagrada. E o bigode faz cócegas, ri, ele achou que eu tinha gostado, quis tentar de novo, tive de ser franca, desagradável. Ele ficou mole, inteirinho, durante mais de duas semanas nada aconteceu. O que é um alívio para a mulher. Quando não acontece é feriado, férias. Por que os homens não tiram férias coletivas? Ia ser tão bom para as mulheres, nenhum incômodo, nada de estar se sujeitando. Na carta de anteontem ele comentava o tamanho de sua língua, que tem ponta afiada e uma velocidade de não sei quantas rotações por segundo. Esse homem tem senso de humor. É importante que uma pessoa brinque, saiba fazer rir. O que ele vai fazer com uma língua a tantas mil rotações? Emprestar ao dentista para obturar dentes? Outra coisa engraçada que a carta falou, só que esta é uma outra carta, chegou no mês passado, num papel azul bonito: queria me ver de meias pretas e ligas. Ridículo, mulher nua de pé no meio do quarto, com meias pretas e ligas. Nem pelada nem vestida. E se eu pedisse a ele que ficasse de meias e ligas? Arranjava uma daquelas ligas antigas, que meu avô usava e deixava o homem pelado com meias. Igual fazer amor de chinelos. Outro dia, estava vendo o programa do Sílvio Santos, no domingo. Acho o domingo muito chato, sem ter o que fazer, as crianças vão patinar, meu marido passa a manhã nos campos de várzeas, depois almoça, cochila, e vai fazer jockeyterapia. Ligo a televisão, porque o programa Sílvio Santos tem quadros muito engraçados. Como o dos casais que respondem perguntas, mostrando que se conhecem. O Sílvio Santos perguntou aos casais se havia alguma coisa que o homem tivesse tentado fazer e a mulher não topou. Dois responderam que elas topavam tudo. Dois disseram que não, que a mulher não aceitava sugestões, nem achava legal novidade. A que não topava era morena, rosto bonito, lábio cheio e dentes brancos, sorridente, tinha cara de quem topava tudo e era exatamente a que não. A mulher franzina, de cabelos escorridos, boca murcha, abriu os olhos desse tamanho e respondeu que não havia nada que ele quisesse que ela não fizesse e a cara dele mostrava que realmente estavam numa boa. Parece que iam sair do programa e se comer.

Como se pode ir a público e falar desse jeito, sem constrangimento, com a cara lavada, deixando todo mundo saber como somos, sem nenhum respeito? Há que se ter compostura. Ouvi esta palavra a vida inteira, e por isso levo uma vida decente, não tenho do que me envergonhar, posso me olhar no espelho, sou limpa por dentro e por fora. Talvez por isso me lave tanto, para me igualar, juro que conservo a mesma pureza de menina encantada com a vida. Aliás, a vida não me desiludiu em nada. Tive pequenos aborrecimentos e problemas, nunca grandes desilusões e nenhum fracasso. Posso me considerar realizada, portanto satisfeita, sem invejas, rancores. Sou uma das mulheres que as famílias admiram neste prédio. Uma casa confortável, bem decorada, qualquer uma destas revistas de onde tiro as idéias podia vir aqui e fotografar, não faria vergonha. Nossa, cinco e meia, se não voar, meu marido chega, o carteiro entrega o envelope a ele, vai ser um sururu. Prestem atenção, veja a audácia do sujo, me escrevendo, semana passada. (Disse que faz três meses que recebo as cartas? Se disse, me desculpem, ando transtornada com elas, não sei mais o que fazer de minha vida, penso que numa hora acabo me desquitando, indo embora, não suporto esta casa, o meu marido sempre na casa de massagens e na várzea, esses filhos com patins, skates, enchendo álbuns de figurinhas e comendo como loucos.) Semana passada o maluco me escreveu: Queria te ver no sururu, ia te pôr de pé no meio do salão e enfiar minha pica dura como pedra bem no meio da tua racha melada, te fodendo muito, fazendo você gritar quero mais, quero tudo, quero que todo mundo nesta sala me enterre o cacete.

Tive vontade de rasgar tal petulância, um pavor. Sem saber o que fazer, fiquei imobilizada, me deu uma paralisia, procurei imaginar que depois de estar em pé no meio da sala recebendo um homem dentro de mim, na frente de todos, não me sobraria muito na vida. Era me atirar no fogão e ligar o gás. Entrei em pânico quando senti que as pessoas poderiam me aplaudir, gritando bravo, bravo, bis, e sairiam dizendo para todo mundo: “sabe quem fode como ninguém? A rainha das fodas?” Eu. Seria a rainha, miss, me chamariam para todas as festas. Simplesmente para me ver fodendo, não pela amizade, carinho que possam ter por mim, mas porque eu satisfaria os caprichos e as fantasias deles. Situações horrendas, humilhantes, desprezíveis para mulher que tem um bom marido, filhos na escola, uma casa num prédio excelente, dois carros.

Apanho a carta, como quem não quer nada, olho distraidamente o destinatário, agora mudou o envelope, enfio no bolso, com naturalidade, e caminho até a rua, me dirijo para os lados do supermercado, trêmula, sem poder andar direito, perna toda molhada. Fico tão ansiosa, deve ser uma doença que me molho toda, o suco desce pelas pernas, tenho medo que escorra pelas canelas e vejam. Preciso voltar, desesperada para ler a carta. O que estará dizendo hoje? Comprei puropurê, tenho dezenas de latas de puropurê. Cada vez que desço para apanhar a carta, vou ao supermercado e apanho uma lata de puropurê. O gesto é automático, nem tenho imaginação de ir para outro lado. Por que não compro ervilhas? Todo mundo adora ervilhas em casa. Se meu marido entrar na despensa e enxergar esse carregamento de puropurê vai querer saber o que significa. E quem é que sabe?

É dele mesmo, o meu querido correspondente. Confesso, o meu pavor é me sentir apaixonada por este homem que escreve cruamente. Querer sumir, fugir com ele. Se aparecer não vou agüentar, basta ele tocar este telefone e dizer: “Venha, te espero no supermercado, perto da gôndola do puropurê.” Desço correndo, nem faço as malas, nem deixo bilhete. Vamos embora, levando uma garrafa de champanhe, vamos para as festas que ele conhece. Fico louca, nem sei o que digo, tudo delírio, por favor não prestem atenção, nem liguem, não quero trepar com ninguém, adoro meu marido e o que ele faz é bom, gostoso, vou usar meias pretas e ligas para ele, vai gostar, penso que vai ficar louco, o pau endurecido querendo me penetrar. Corto o envelope com a tesoura, cuidadosamente. Amo estas cartas, necessito, se elas pararem vou morrer. Não consigo ler direito na primeira vez, perco tudo, as letras embaralham, somem, vejo o papel em branco. Ouça só o que ele me diz: Te virar de costas, abrir sua bundinha dura, o buraquinho rosa, cuspir no meu pau e te enfiar de uma vez só para ouvir você gritar. Não é coisa para mulher ler, não é coisa decente que se possa falar a uma mulher como eu. Vou mostrar as cartas ao meu marido, vamos à polícia, descobrir, ele tem de parar, acabo louca, acabo mentecapta, me atiro deste nono andar. Releio para ver se está realmente escrito isso, ou se imaginei. Escrito, com todas as palavras que não gosto: pau, bundinha. Tento outra vez, as palavras estão ali, queimando. Fico deitada, lendo, relendo, inquieta, ansiosa para que a carta desapareça, ela é uma visão, não existe e, no entanto, está em minhas mãos, escrita por alguém que não me considera, me humilha, me arrasa.

Agora, escureceu totalmente, não acendo a luz, cochilo um pouco, acordo assustada. E se meu marido chega e me vê com a carta? Dobro, recoloco no envelope. Vou à despensa, jogo a carta na cesta de natal, quero tomar um banho. Hoje é sexta-feira, meu marido chega mais tarde, passa pelo clube para jogar squash. A casa fica tranqüila, peço à empregada que faça omelete, salada, o tempo inteiro é meu. Adoro as segundas, quartas e sextas, ninguém em casa, nunca sei onde estão as crianças, nem me interessa. Porque assim me deito na cama (adolescente, escrevia o meu diário deitada) e posso escrever outra carta. Colocando amanhã, ela me será entregue segunda. O carteiro das cinco traz. Começo a ficar ansiosa de manhã, esperando o momento dele chegar e imaginando o que vai ser de minha vida se parar de receber estas cartas.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Desabafo de um ex funcionário da Prefeitura de Salvador

Ele foi meu colega na empresa de tecnologia da Prefeitura de Salvador. No pouco tempo em que trabalhei lá, presenciei os maiores absurdos, típicos de uma empresa aparelhada, cujos chefes eram indicados politicamente. Antônio Imbassahy era o prefeito. Já desligado da administração municipal, tempos depois, com a prefeitura administrada por João Henrique, eu vi a chefe de um dos departamentos da empresa municipal de tecnologia no rio vermelho com a camisa do PT, "comemorando" a reeleição de Lula. Surpreendido com o que vi, respirei aliviado por não pertencer mais ao quadro daquela empresa.

Mas meu colega persistiu, ficando na empresa por doze anos. E tentou executar projetos em prol da população. Sem êxito. Recentemente, uma nova oportunidade de trabalho apareceu-lhe. De imediato, pediu desligamento e enviou uma mesagem a todos os colegas, a qual transcrevo a seguir com o consentimento dele. Para além de uma crítica à política municipal, a mensagem de meu colega apresenta uma reflexão ao que já figura como aspecto da cultura baiana.

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Amigos,

Primeiro lugar um excelente dia e um desejo de um futuro brilhante para todos.

Peço desculpas pela maneira abrupta como estou avisando da minha saída da empresa, mas foi assim que as circunstancias determinaram: fui convocado abruptamente para tomar decisões importantes e entre elas seguir um novo caminho.

Queria agradecer a todos vocês, mais próximos ou menos próximos,  que consciente ou inconscientemente me concederam uma oportunidade ímpar de aprendizado intelectual, humano e espiritual na Prefeitura do Salvador. Tenho muito a agradecer pelo que desenvolvi, não pelo conhecimento técnico (esse que é passageiro e devorado pelas constantes mudanças tecnológicas) mas, pelo conhecimento que obtive das organizações, das pessoas, dos nossos comportamentos, nossos defeitos-erros e nossas virtudes. 

Carrego, como a maioria daqueles que já trabalharam na iniciativa privada, a frustração de não poder ter servido ao público-cidadão com projetos que poderiam tornar  nossa cidade lugar melhor de se viver. Sinto pela crônica resistência da Prefeitura de Salvador em não ter a sua própria Infovia, a Cidade Digital, que traria inestimáveis benefícios às empresas, à prefeitura e  à cidade. Desde 2006, o assunto é de conhecimento de todos (empregados, gestores e políticos).  Eu fiz várias investidas externas e sei que existe uma "resistência" que priva a cidade de um feito, que ao contrário do que se pensa, traria grandes dividendos políticos, econômicos e sociais  muito mais vantajosos do qualquer outro arranjo político que se conceba.  Pode parecer arrogante ou ilusório, mas essa é a minha visão após 08 anos de observação (permitam-me evocar John Lennon mas I'M A DREAMER com muito orgulho).

É estranho ver uma terra que tem a vocação natural para inovar e brilhar, o lugar onde foi inventada a Guitarra Elétrica, que teve o primeiro Centro Espírita do Brasil, onde foi descoberto o primeira fonte de Petróleo do país, onde o mestre da Anísio Teixeira teve a inspiração para propor a Revolução do Ensino, que já teve marca própria de Refrigerante e Chocolate, é muito  frustrante ver a terceira capital do país apequenar-se a tal ponto de se orgulhar apenas do seu "carnaval", seu "acarajé", seu "pelourinho" e da sua dupla "ba x vi". 

Mas o que dizer de uma cidade que no início do século 20  usava bonde como transporte principal, mas em pleno século 21 ainda não concluiu o seu metrô porque o poder político privilegiou o cronograma de interesses privados concorrentes dos trilhos?

O que eu tenho a dizer à classe política de Salvador é que um projeto político vitorioso tem que adotar pelo menos um projeto de repercussão social para fazer história. Podem falar o que quiser do atual Governo Federal, mas ele adotou vários projetos de alcance e um deles é que sustenta a vitória do partido ao longo dos últimos 12 anos. Simples assim, ou se privilegia o financiamento de campanha e seus interesses particulares ou se faz história através de transformações na vida das pessoas. O poder público de Salvador ao deixar de fazer o planejamento da cidade e terceirizá-lo à iniciativa privada (como fez ao extinguir seus órgãos pensantes e a escantear funcionários de carreira)  corre o risco de permanecer por longo tempo uma cidade provinciana e só viver da sua fama de cidade da "festa". 

(...)

Estou por aí, mas ligados a vocês pelo coração e pela Internet!

sábado, 18 de outubro de 2014

A crueldade da opressão feminina em Navalha na Carne

Primeira adaptação de Navalha na Carne, em 1969

Carlos Henrique Nunes Costa

É no quarto de um hotel barato que se reúnem as três únicas personagens da peça Navalha na Carne, de Plínio Marcos. Em meio a cinco mobílias gastas, a prostituta Neusa Sueli, o cafetão Vado e o homossexual Veludo desvelam uma ruidosa dinâmica de opressão, ora no papel de vítimas, ora no papel de algozes. A realidade é apresentada in natura e, por isso mesmo, dota as personagens de grande complexidade. Elas são genuínas feras lutando com seu instinto pela sobrevivência.
Logo nos primeiros diálogos, torna-se evidente a violência presente na relação entre Neusa Sueli e Vado. O tratamento ríspido do cafetão para com a prostituta, não recíproco, levanta suspeita sobre a hierarquia dessa relação e suas consequências. A entrada em cena de Veludo modifica o enlace do casal, reconfigurando as teias de poder existentes, embora ainda sejam a reprodução da opressão social a que estão submetidos.
O texto não encerra uma postura moral; pelo contrário, a moral passa ao largo de toda a trama da peça. Plínio Marcos não valora a situação; ele apenas a apresenta. Assim como sua primeira obra, Barrela, Navalha na Carne apresenta-se como interlocutora de um extrato social invisibilizado no teatro brasileiro daquele período.
Plínio Marcos estreou como dramaturgo em 1959, em Santos, sua cidade natal. Começou a carreira escrevendo peças que retratavam a vida de páreas sociais. O universo de prostitutas, cafetões, loucos, homossexuais, bandidos, marginais vinham à tona através de suas obras. Ao contrário dos dramaturgos da época, que, engajados politicamente contra a Ditadura Militar, alçavam ao estado de herói o proletariado brasileiro, Plínio deu vazão a personagens sem interesse político, sem qualquer propósito revolucionário. Ainda assim, foi visto como uma ameaça ao regime e teve diversas obras censuradas.
Vieira (1994) divide a dramaturgia de Plínio Marcos em três fases: anos 1960 e 1970, cujas peças escritas contêm a maior parte das personagens marginais e desvalidas; 1970 a 1976, período em que se dedicou a musicais; e 1978 a 1988, fase dos textos míticos. Mas foi a primeira fase do autor que o levou, mais tarde, ao reconhecimento, sendo tido como um dos grandes nomes do Teatro da Crueldade, em sua pretensa vertente brasileira.
O teatro da primeira fase de Plínio Marcos caracteriza-se por personagens autênticos, movidos por seus sentimentos. Estando o rancor, o ressentimento, o ódio presentes na dinâmica social desses indivíduos, a violência acaba por se tornar o fio condutor do enredo. Os conflitos são mostrados de imediato, mesmo sem antes delinear o perfil de cada personagem. Os diálogos são providos de um vigor que desnuda com crueza a situação (VIEIRA, 1994).
No Teatro da Crueldade, movimentos, gestos, emoções se expandem; o teatro adquire outra expressividade que não a das palavras. De mera distração, torna-se um meio de questionamento do homem, um olhar voltado para o seu interior (ARTAUD, 2006). E, apesar de não emitir juízo de valor em seus textos, pois suas personagens nada conhecem de moral, as escolhas de Plínio Marcos deixam clara a ideologia que legitima a exclusão social.
Segundo Souza (2009), a ideologia meritocrática vigente, embasada nas premissas democráticas-capitalistas de igualdade e liberdade dos indivíduos, invisibiliza a classe social. Sob o pretexto de igualdade de oportunidades, justificam-se as desigualdades, culpabilizando os oprimidos por sua posição social – vítimas de si mesmos. Essa ideia está incrustada no senso comum de tal forma que os indivíduos marginalizados reproduzem, sem se dar conta, a própria precariedade. Eles acabam por reproduzir em seu meio os esquemas do poder dominante.
Essa condição está presente acintosamente nas obras da primeira fase de Plínio Marcos. Em Navalha na Carne, é percebida ao longo da trama, através do jogo de submissão ao qual cada personagem impõe à outra. A humilhação física e psicológica é uma arma constante para estar no centro do poder. A relação entre eles é tão conflituosa que se torna premente indagar o porquê de Neusa Sueli continuar com Vado, em que se sustenta tal dependência, se existe afeto.
Neusa Sueli sustenta Vado, que diz ser este o motivo de continuar na relação. Portanto, a relação de poder não é, necessariamente, econômica; não para essa classe social. Neusa demonstra não querer perder seu cafetão e não o desmente quando este afirma que “Mulher que quer se bacanear com cara linha de frente como eu tem que se virar certinho”. A dependência é, então, pautada na imagem que Vado traz para Neusa. Ainda que submissa a ele, fora daquele quarto de hotel ela ocuparia uma posição perante as demais colegas de profissão que sozinha não conseguiria manter.
Em determinado momento da peça, Neusa Sueli diz-se cansada da vida que leva. Reclama do comportamento de Vado diante de seu esforço para ganhar a vida. “Duvido que gente de verdade viva assim, um aporrinhando o outro, um se servindo do outro”. Mas, parada na porta do quarto após a saída de Vado, pergunta-lhe, como quem pede, se ele vai voltar. É a inércia frente àquela situação. As personagens não são dotadas de senso político.
Neusa Sueli está distante de representar um modelo de mulher feminista. Ela almeja uma vida como a de todo mundo, inclusive no amor. Mas essa é uma fantasia que nunca será realizada. Ironicamente, ela está “presa” à Vado, seu antagonista, justamente o oposto do amor sonhado. É, portanto, retratada como uma mulher fraca.

Vera Fishcer como Neusa Sueli na segunda adaptação para o cinema.

A ideia de opressão feminina é também reforçada pela personagem do homossexual Veludo. Durante a briga para forçar uma confissão do roubo do dinheiro que Neusa havia deixado para Vado, a prostituta agride o homossexual, arranhando seu rosto. Nesse momento, Veludo ameaça Neusa e diz a Vado que pode enfrentá-la de igual para igual, pois ela é mulher. Soma-se a isso o fato de Veludo ter roubado o dinheiro para sair com um rapaz. Decerto, Veludo também precisa pagar para ter companhia.
Na dramaturgia pliniana, homossexuais e mulheres são elos igualmente fracos, pois dotados de um devir feminino. Embora faça parte de uma classe excluída, o cafetão exerce o papel de dominante. O homem heterossexual e viril subjuga o feminino. Retrata-se, dessa forma, uma hierarquia de gênero não inventada por aquelas personagens, mas ainda assim desempenhada por eles com veemência. Sem perceber, eles reproduzem a teia social do poder dominante que os imobiliza na exclusão. E, convivendo diariamente com essa realidade, passam a aceitá-la e a servir-se dela.

Qual o sentido de autoconfiança que é possível para esses seres humanos que só aprenderam a usar e serem usados? Que tipo de relação consigo mesmos? Que tipo de relação com os 'outros'?” (SOUZA, 2009, 48)

Referências
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Tradução: Teixeira Coelho. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

MARCOS, Plínio. Navalha na Carne. In: ZANOTTO, Ilka Marinho. Plínio Marcos: melhor teatro. São Paulo: Global, 2003.

SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: UFMG, 2009.


VIEIRA, Paulo. Plínio Marcos, a flor e o mal. São Paulo: Firmo, 1994.

sábado, 15 de março de 2014

Um encontro com a arte contemporânea

por Carlos Henrique Costa


A tarefa de um galerista de arte é árdua. Leva tempo para que se ganhe a confiança e a notoriedade no mercado local. Com a formação de uma clientela, então se torna possível alçar voos mais altos e conquistar, também, os mercados nacional e internacional. Paulo Darzé é um exemplo vivo de experiência de sucesso num mercado tido como instável e com público oscilante. Com 31 anos no mercado de arte, começou com uma pequena galeria no Salvador Praia Hotel, no bairro de Ondina, em 1983, em sociedade com um amigo. Depois, decidiu seguir sozinho e mudou-se para a Graça, onde, desde 2003, ocupa um espaçoso galpão no Corredor da Vitória.

Paulo Darzé não esconde as dificuldades que enfrentou e ainda enfrenta para comercializar obras de arte contemporânea. De fato, a arte contemporânea passa por uma grande resistência do público frente às obras produzidas. O senso de estética da arte moderna, iniciado em meados do século XIX, ainda influencia o olhar do público. Naquela época, os movimentos nasciam com o lançamento de manifestos, os quais funcionavam como manuais para a crítica e para o público. Toda a intenção por trás dos movimentos orientava o olhar dos especialistas da arte e, consequentemente, do público. Este pensamento perdura e afasta o público acostumado a vangloriar o antigo, uma arte que se pretendia clássica, longeva, atemporal. Ao contrário disso, a arte contemporânea manisfesta-se no momento que o público a observa; seu 'sentido' é construído durante a fruição. O observador complementa a obra de arte, passa a ser parte de sua produção, não tendo mais um papel passivo. E isso causa incertezas, estranhamentos. Esse cenário exige maior esforço por parte do galerista, que passa a desempenhar também a função de marchand. Ele é responsável pela organização de exposições, apresentando novos artistas ou os novos trabalhos de artistas já consagrados.


Na opinião de Paulo Darzé, o baiano, ainda impregnado de um senso estético barroco, tem um olhar conservador sobre as obras de arte contemporânea. Por isso, as galerias passaram a exercer a função de impulsionar o cenário artístico local. Por meio de exposições, apresentam ao público artistas reconhecidos no eixo Rio-São Paulo, contribuindo para “abrir o olho da produção local”. Pela galeria, situada no Corredor da Vitória, já passou, por exemplo, Antônio José de Barros de Carvalho e Mello Mourão, mais conhecido como Tunga, notável artista contemporâneo nacional. Nascido na pequena cidade de Palmares, interior de Pernambuco, vive hoje no Rio de Janeiro, mas já tem carreira internacional – suas provocadoras instalações alcançaram salões em Nova Iorque, em Chicago, em Paris e em Amsterdã. Hoje, é citado por Darzé como um dos artistas cuja exposição mais ajudou na consolidação da sua galeria no mercado de arte.



Paulo Darzé Galeria de Arte
Rua Dr. Chysippo de Aguiar, 8 – Corredor da Vitória
Tel.: (71) 3267-0930
Horário de Funcionamento: segunda à sexta, das 9h às 19h; e sábado, das 9h às 13h.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

"Sobre o fanatismo"

Este post é, antes de tudo, mais uma dica de blog, um dos tantos que acompanho. O nome do blog é "O Fim" e seu autor, da cidade de Santiago, no Rio Grande do Sul, é um jovem poeta, de estrofes breves e fortes. O último poema compartilhado, chamado "Sobre o Fanatismo", motivou-me a divulgar seu trabalho no meu blog. Além deste, existem tantos outros poemas dignos de destaque. A seguir, transcrevo-o.

Sobre o Fanatismo

I

fanatismo
é observar um galho
julgando ser a árvore
e querer que o galho
seja a árvore
em definitivo

II

todo homem se suicida:
seja em corpo ou mente
em psique ou alma
de tal ou qual forma
em maior ou menor grau
em tormento ou na paz...

fanatismo
é suicidar-se
jurando a todos e a si
que não o faz

III

fanático
é quem quer fazer
com que o seu eu
se torne o meu

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Nós, os "homines sedens"

Na edição número 185 da Revista Cult, Márcia Tiburi faz uma sucinta resenha, transcrita adiante, sobre o livro "O pensamento sentado", de autoria de Norval Baitello Junior, professor da PUC de São Paulo. De imediato, interessei-me pela temática e incluí a publicação na minha "lista de desejo". Ao ler a resenha, notei que o sentar está mesmo culturalmente enraizado no ambiente de trabalho capitalista -- vide as experiências profissionais que tive ao longo da vida, inclusive a atual.

Um dia, no sanitário da empresa, um colega de setor me abordou, dizendo estar me procurando há algum tempo, mas que nunca me encontrava no lugar. Embora tenha sido um exagero de sua parte tal afirmação, eu realmente não costumo ficar todo o tempo sentado em minha posição, que chamo de vez em quando, em tom jocoso, de estábulo. Não por ser inquieto, mas por considerar bons hábitos, também profissionais, a relação pessoal e os intervalos de descanso. Há quem prefira permanecer em sua estação de trabalho por longas horas, levantando-se apenas para o (considerado, no senso comum organizacional) estritamente necessário. No entanto, esse não é perfil de todos, e não pode ser tido como um padrão a ser seguido.

A disciplina laboral que aprendi como correta ao longo desses anos é: permanecer no nicho de trabalho durante todo o tempo, independente da atividade que esteja desempenhando e do tempo necessário para cumpri-la, se definido. Não ter essa conduta gera fofoca dos colegas e críticas por parte das chefias mais conservadoras. 

Em outro extremo, o ócio pode ser tolerado se você não demonstrá-lo por completo, ou seja, ficando sentado em frente ao seu microcomputador. Pode-se navegar na internet, ler artigos etc. Mas a leitura deve ser via tela LCD. Abrir um livro de romance, arte, filosofia, qualquer um cuja temática fuja à sua (aparente) especialização, incomoda ainda mais.

É claro que este é apenas um exemplo, algo a que o tema me remeteu de imediato. Recomendo a leitura da resenha e, apesar de ainda não ter lido o livro, considero o tema bastante interessante.

Marcia Tiburi
Tratar o ato de sentar como uma questão culturalmente relevante pode soar como mera brincadeira. Quem, começando a levá-la a sério, se perguntar “quanto tempo de nossas vidas passamos sentados?” ou “quantas cadeiras há no mundo?”, por mais que consiga respostas estatisticamente impressionantes, não terá, contudo, atingido o cerne da questão inusitada que nos faz pensar nas formas assumidas pelo sedentarismo como caráter da cultura. Na contramão do nomadismo, o sedentarismo faz parte da história de nossa civilização. Mais do que parte da história, é uma postura que caracteriza nosso tempo presente. A maior parte de nossos gestos corporais acaba no assento; passamos muitas horas do dia sentados, tudo, em nossas vidas, convida-nos a sentar. Mas esse convite agradável ao descanso tem significados mais complexos: sentamos em casa, na rua, nas escolas, sentamo-nos diante de máquinas; sobretudo, hoje em dia, sentamo-nos diante de telas.
Norval Baitello Junior, professor da PUC de São Paulo, escreveu, em seu livro O pensamento sentado (Unisinos, 2012), sobre o lugar do “assento” em uma cultura sedentária. Sua crítica vai na direção de um pensamento sentado que, para ele, seria o pensamento acomodado. Recuperando a expressão alemã usada por Nietzsche para falar da “vida sedentária” – Sitzfleisch –  ele explora a tradução por “carne de assento” que, literalmente, leva à usual “bunda”. Bunda tem um vasto alcance no Brasil. Mesmo que soe deselegante, não seria um erro considerar a atualidade de um “pensamento-bunda”, aquele pensamento cansado que, no extremo, expressa o que entendemos no cotidiano, no âmbito da irresponsabilidade do “bundão”.
O caráter “assentado” é o da “discursividade previsível e acomodada”, a que reduz o ato de pensar em nossa época, contra sua natureza mais íntima. O “decréscimo da mobilidade” do corpo é, segundo ele, também do pensar, cuja imprevisibilidade e capacidade de surpreender estariam em baixa. Conhecemos essa acomodação, sabemos que ela é necessária ao poder, ao sistema econômico e político, que esperam corpos dóceis e mentes paradas, repetindo acomodadamente mais do mesmo que mantém tudo no mesmo lugar: sentado. 
Pensar na reflexão aos saltos do livro de Baitello é uma atitude dinâmica, como seria o movimento de nosso corpo, inquieto e propenso a caminhar, pular, correr e saltar. A capacidade humana, que está ligada a todo o nosso processo de aprendizagem em relação à vida, de explorar o entorno, é diminuída quando tudo se reduz a “assento”. O primata que somos se ressente de não poder mover-se.
Regra da cultura
Baitello nos lembra que sentar e sedar têm a mesma origem etimológica: sedere. Assim, comentando que somos “Homo sedens”, a atrofia dos músculos e dos movimentos surge como uma espécie de regra da cultura. Quando observamos o nosso dia a dia, sentados por todos os lados, diante de computadores, da televisão, dentro de carros, temos certeza que a mobilidade corporal que nos caracterizaria, e que ainda se coloca como nossa potência, cede lugar à estranha mobilidade incorporal da máquina. As máquinas se movem em nosso lugar, tornamo-nos imóveis: esperamos sentados a máquina que nos substitui. De certo modo, participamos passivamente de um “devir” imóvel, que não nos leva a lugar nenhum, senão àquele onde já fomos previamente postos.
Por fim, forçados a sentar, vivendo o elogio da disciplina, resistimos enquanto seres sentados em nome de um esforço. Valorizamos aquele que consegue aguentar a sala de aula, a cadeira no trabalho burocrático.
Somos, por fim, vítimas do que Baitello apontou como uma “conjunção perversa”, em que o sedentarismo de nossos corpos alia-se à hiperatividade visual. Anestesiados diante das máquinas, vivemos na direção contrária de nossa própria capacidade nômade.
Talvez fugir desse mundo seja um desejo soterrado por cadeiras numa avalanche mole ao qual nosso corpo se adequa por ter medo de seus próprias potências. Bom lembrar que fugir é sempre um direito.



quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

The gay men project

Seguindo a tendência de diversos trabalhos de abordar o cotidiano de pessoas em metrópoles -- existem páginas no Facebook que captam um momento na vida de cidadãos de NY, Paris, SP etc. --, o corpo feminino descolonizado (The Nu Project), entre outros, o fotógrafo novaiorquino Kevin Truong criou o The Gay Men Project. Como o próprio nome sugere, trata-se de um catálogo visual mostrando a vida de "homens gays" ao redor do mundo. O diferencial em relação aos outros trabalhos que conheço do mesmo tipo é que todos podem participar enviando sua história. O projeto segue sem depender exclusivamente do fotógrafo para registrar o cotidiano dos gays, o que pode render muito tempo de vida e muitas histórias interessantes.
 
Foto enviada por Flávio, de São Paulo

Com a palavra, o idealizador do projeto (em inglês):

This project is simple. Basically I’m trying to photograph as many gay men as I can. My goal is to create a platform, a visibility on some level, and a resource for others who may not be as openly gay. A visual catalog of gay men and their stories. When I think of my own experience, and all the time I spent in the closet and hiding the fact that I was gay–to be at a place now where I feel completely comfortable being on the blog and telling the world “Hey, I’m a gay man,” I think there’s a power in that, for me and for a lot of the men on the blog. So it’s kind of a numbers game, I think the more men I photograph, the more impact the project has.

My dream is to take the project to as many different cities as I can across the world.
Kevin Truong

Acompanhe os relatos no site thegaymenproject.com/