quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Areia e Tempo na Narrativa de uma Vida [2/4]

Ler a parte 1/4

Para auxiliar o processo de análise, optou-se por decupar a abertura e o fim do filme. Na abertura, descrita a seguir, o tipo de narrativa e o local são apresentados. Embora os personagens principais também o sejam, sua personalidade não é entregue por completo. O enredo é desvelado aos poucos, na medida em que os personagens ganham notoriedade.

A abertura do filme
0min 00seg - 7min 34seg

Por longos 2min 12seg, a tela preta anuncia os produtores, patrocinadores e apoiadores da realização cinematográfica que está por vir. As logomarcas são apresentadas de forma lenta. Ao fundo, um ruído distorcido remete ao zumbido provocado pelo vento ao encontrar uma barreira para atravessar (a fresta de uma janela, por exemplo). Esses aspectos produzem uma sensação de quietude que prenuncia um filme de narrativa lenta, com planos majoritariamente longos e finitos. Ao exibir os letreiros com a produtora executiva, o diretor, as atrizes principais e o título do filme, o barulho do vento ganha maior nitidez, aumentando gradativamente de volume.

A primeira imagem que se tem do filme propriamente dito é uma tomada aérea das dunas, dos Lençóis Maranhenses. Através deste grande plano, vê-se amontoados de areia com pequenos lagos em sua base. Não há sinal de aglomerado urbano ou mesmo de aldeia. Um pássaro é visto e ouvido sobrevoando livremente o local, fazendo o mesmo trajeto da câmera. Sem nenhuma dificuldade de percepção, enxerga-se sua sombra nas areias logo abaixo. O vento toma conta do ambiente, podendo notar também, ao longe, o som do mar. As poucas cores, sempre tendendo para o monocromático, variações de claro e escuro, discretas tonalidades, reforçam a sensação de um local ainda selvagem, com pouca interferência humana. O filme apresenta, portanto, o espaço onde se passará a história: um lugar distante da civilização, ermo, aparentemente inóspito.


O plano seguinte mostra uma paisagem. A câmera está fixa sob a areia, enaltecendo o seu intenso movimento ao ricochetear do forte vento. Ao fundo da imagem, um banco de areia, a parte mais alta da formação, por onde uma caravana começa a passar, partindo da extremidade esquerda para a extremidade direita do plano. Assim, em primeiro plano vê-se muita areia sendo carregada pelo vento, em sentido oposto ao da caravana. Esta caminha de forma irregular, esparsada, em grupos distintos, uns mais lentos que os outros, enfatizando a dificuldade de homens e de animais de caminhar sob o sol forte, a areia fofa e o vento de areia em direção oposta. Acima do banco de areia, um pequeno espaço é reservado para o céu, esbranquiçado, quase da mesma tonalidade da areia. As cores apresentadas pelo ambiente contrastam com a silhueta da caravana que o atravessa. Estrangeiros. Os letreiros com os nomes dos atores secundários são exibidos durante os 2min 11seg do trajeto. O som do vento predomina, mas ouve-se também, mais distantes, gritos de homens a puxar jumentos, a pedir ajuda e a incentivar os demais. Ao fim deste plano, o letreiro situa com clareza o espectador no espaço e no tempo: “Maranhão - Brasil 1910”. Agora, os comandos de voz dos homens ficam nítidos. O vento passa, então, a segundo plano da percepção auditiva. Nota-se claramente que os gritos mais audíveis são do homem que está à frente da caravana, tentando estimular os demais: “Vamos. Não parem”. Encerra-se a primeira sequência.

O grande plano passa para um plano médio. Os personagens começam a ser apresentados. A câmera ainda está fixa. O homem à frente da caravana é visto em plano frontal, movimentando-se na direção da câmera. Uma profusão de ruídos é escutada. Cabras berrando, carroceria sendo puxada, homens incentivando os demais, objetos tilintando ao caminhar irregular e contido dos jumentos. O vento permanece como pano de fundo. Vê-se ainda muita areia suspensa no ar. 


O próximo plano apresenta as duas protagonistas. Desta vez, a câmera está em movimento horizontal, em primeiro plano lateral, em close-up, acompanhando o andar das personagens. Nota-se que a cabeça delas, de perfil, entra e sai freneticamente do enquadramento. A expressão do rosto é de extremo cansaço físico. Elas estão muito suadas e utilizam lenços para proteger a cabeça do sol escaldante. A respiração ofegante toma conta do som. O espectador é levado a sentir o cansaço daquela caminhada desgastante. Ao fundo, ouve-se o guia da caravana avisar que o destino já se aproxima. As duas protagonistas não falam.

Com câmera fixa em plano médio, o chefe de expedição é novamente enfocado. Ele segura um mapa, faz uma rápida leitura e afirma a um componente da caravana ter chegado ao destino procurado, demonstrando ter esperança daquele terreno possuir, num futuro próximo, água. Vento e ruídos de fundo da caravana persistem. O primeiro diálogo do filme levanta questões sobre o motivo da migração daquele grupo para uma região tão distante. O objetivo do grupo era encontrar o local onde poderia morar e subsistir. Do que estariam fugindo, afinal?

Num roupante de entusiasmo, o guia da caravana atravessa todo o plano – geral e lateral. Ele conclama os demais membros a montar acampamento, certo de que compartilham da mesma euforia. As protagonistas avistam o que restou de um pequeno lago, ajoelham-se diante de uma pequena poça e banham-se, tentando apaziguar o calor provocado pela alta temperatura irradiada pelo sol e absorvida pela areia.

Os diálogos das duas sequências que compõem a abertura do filme são raros. Durante os 7min 35seg introdutórios, o espectador é recheado de sensações, que desvelam o local e a reação das personagens a ele. A história não é explicitada de imediato. O nome das personagens é apresentado nas próximas sequências, aos poucos. As suas personalidades delineiam-se gradativamente, sem pressa. Apesar da narrativa clássica, o enredo não é entregue ao espectador de imediato. As sequências iniciais levantam mais questões do que trazem respostas a respeito da trama. 


Um possível motivo para a migração da família para os Lençóis Maranhenses pode ser obtido com o auxílio de uma contextualização histórica. Em 1910, o Brasil passava por graves problemas financeiros. Diversos bancos decretaram falência. Os grandes centros urbanos estavam com a economia combalida. A dívida interna e externa era muito alta. Dessa forma, pode se justificar o entusiasmo de Vasco, o guia da caravana, ao encontrar o local e demonstrar esperança de ter ali água num futuro breve. Na sequência que se iniciar aos 16min 55seg, durante uma discussão entre Vasco e sua esposa, Áurea, que se recusava a entrar na cabana de palha e madeira recém-construída, os diálogos desvendam o mistério:

Áurea: “Eu tinha a minha casa.
Vasco: “Você não tinha nada. Tinha dívidas, só.
Áurea: “Morar aqui é me fazer pagar caro demais pelas minhas dívidas.
Vasco: “Eu também paguei caro demais por você.

Pode-se, assim, associar o casamento de Áurea e Vasco a este problema financeiro familiar, que pode ter começado após a morte de seu pai – a mãe, D. Maria, veste luto. Tudo isso pode ser inferido a partir da junção dos diálogos, do figurino e do contexto da época.

As duas únicas mulheres do grupo são relegadas aos trabalhos domésticos. A todo tempo, obedecem aos comandos de Vasco. Áurea está no início da gravidez e sua mãe já demonstra preocupação com o estado de saúde de ambos. Nenhuma das duas está satisfeita com a migração, principalmente a jovem. A mudança não foi uma escolha para elas. Nas cenas seguintes, vê-se Áurea e D. Maria planejando uma fuga, notadamente após Vasco ter rompantes agressivos, causados pelo contato com os moradores locais, de uma aldeia quilombola próxima, com os quais há um rápido embate pela terra. Em virtude disso, os demais membros do grupo passam a desconfiar da segurança do local e debandam, deixando Vasco, Áurea e D. Maria sozinhos. Com todo o trabalho ainda por fazer – eles estavam finalizando a construção da casa –, ao perceber que o grupo estava desfeito, Vasco tem um novo rompante agressivo. Mas, desta vez, ele causa um acidente que resulta na sua própria morte (sequencia que começa aos 20min 03seg).

A partir da morte do patriarca, as duas mulheres veem-se completamente isoladas. O filme volta-se, então, para a luta diária de Áurea e D. Maria contra o ambiente hostil e a saudade do conforto da cidade grande. Em um trecho (24min 43seg), a mãe segue um grupo de homens, mas os perde de vista. É ajudada pelas pegadas e por um bando de aves marítimas. Ela, então, encontra a praia, onde está também a aldeia quilombola. D. Maria se vale da natureza (o voo dos pássaros em direção ao mar) para buscar ajuda dos nativos. A relação com estes é reconfigurada. A postura das protagonistas frente ao ambiente é reformulada a cada nova experiência. As personagens femininas ocupam, agora, o centro da trama. Com elas, os indomáveis montes de areia e o tempo, outros dois grandes personagens, ora aliados ora antagonistas.

Leia a terceira parte da análise, clicando AQUI.

Ler a parte 1/4

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