sábado, 30 de março de 2013

À Copa da Árvore


"As gralhas pousavam; as gralhas se alçavam no ar. As árvores em que tocavam tão caprichosamente pareciam insuficientes para alojá-las. As copas faziam cantar a brisa em seu interior; os ramos rangiam audivelmente; de vez em quando, embora fosse pleno verão, deixavam cair cascas ou galhos finos. As gralhas subiam e desciam de novo, erguendo-se em número menor, sempre que as andorinhas se preparavam para pousar, pois a noite já era suficiente para tornar o ar quase escuro dentro da floresta. O musgo estava macio; os troncos das árvores espectrais. Atrás delas abria-se uma campina prateada. O capim-dos-pampas erguiam suas lanças emplumadas de montículos verdes no fim do prado. Um trecho de água cintilava. A mariposa convulvulos girava em parafuso sobre as flores. Laranja e púrpura, nastúrcio e cerejeira diluíam-se na meia-luz, mas a planta do fumo e a flor da paixão, sobre as quais regirava a grande mariposa, eram alvas como porcelana. As gralhas faziam chiar as asas juntas nas copas das árvores, e ajeitavam-se para dormir quando, bem ao longe, um som familiar reboou e tremeu -- intensificou-se -- praticamente estrondeou em seus ouvidos -- sagradas, sonolentas asas outras nos ares -- a sineta do jantar na casa."

Trecho de "O Quarto de Jacob", de Virgínia Woolf.

domingo, 24 de março de 2013

Afinal, alguém pode me dizer o que é arte?

Carlos Henrique Costa*

Em 1994, a autora teatral francesa Yasmina Reza1 escreveu a peça “Arte”2 , cuja trama gira em torno da amizade entre três amigos abalada após um deles, um dermatologista de sucesso e apreciador de arte contemporânea, adquirir uma tela totalmente branca com riscas brancas por um preço alto. No início da peça, um dos amigos é convidado pelo dermatologista para apreciar a obra. Depois de muita análise e, principalmente, saber o preço da nova aquisição, o amigo exprime a sua opinião: “Tu destes 6 mil contos por esta merda?”. Em um plano à parte, fora da discussão com o amigo, como se estivesse em seu pensamento, o dermatologista caracteriza o amigo como um sujeito inteligente, com uma boa situação financeira, mas que faz parte dos novos intelectuais, inimigos da modernidade e adeptos dos bons velhos tempos. Na peça, a tela é apenas um estopim para a crise que se apresenta na amizade entre os amigos, mas as opiniões proferidas pelos personagens para julgar a obra são bastante pertinentes para discutirmos o conceito de arte.

É impossível lançar uma definição de arte sem criar polêmica, um debate cujas ideias dificilmente convirjam para um conceito abrangente satisfatório. Ela é algo que os próprios especialistas não conseguem definir conclusivamente. Estes não formulam regras precisas que abarcam todas as expressões artísticas, restando-nos identificar a arte pelo simples julgamento do que é belo, do que é bom, do que nos causa sensações agradáveis (JANSON, 2007). Dessa forma se comportaram os personagens de Yasmina Reza:
  • O dermatologista adquiriu a tela porque se tratava de uma obra de um conhecido pintor e, por isso, pagou o preço que ela realmente custava;
  • O amigo, no entanto, considerou a compra absurda, pois não compreendia o significado da obra, e, assim, diagnosticou que o dermatologista convenceu-se de que é um colecionador, um apreciador de arte, num tom que denuncia um verdadeiro entendimento do assunto.
Segundo Janson (2007), “As pessoas acostumaram-se, desde há muito, a misturar os dois problemas num só. Quase sempre, quando perguntam 'Por que isto é arte?', querem dizer 'Por que isto é boa arte?'. Quantas vezes ouvimos esta pergunta – por vezes nós próprios a fizemos – perantes certas obras estranhas e perturbadoras que vemos hoje em dia em museus e exposições!”. Limitar a arte a um objeto estético, feito apenas para ser contemplado frente à sua representação de belo, é recorrer a um conceito filosófico também insolúvel. Sabe-se, no entanto, que o juízo feito para caracterizar algo como belo advém do gosto e este é um produto da cultura. Dessa forma, o autor propõe que para que se entenda a arte é imprescindível que “conheçamos o estilo e as concepções de um país, de um período e de um artista”. Dessa forma, sempre levamos em consideração, ao observar uma obra, o valor simbólico intrínseco através do qual o artista nos transmite seus pensamentos complexos.

O discurso de Janson (2007) em torno do conceito de arte é claramente o de um historiador da arte. Para este, não interessa apenas a arte em si, mas todo o contexto sócio-cultural que a envolve. Dessa forma, os aspectos culturais são imprescindíveis para analisar as obras, para conhecer o trabalho do artista e, porventura, categorizá-lo. Mas, e para defini-las como arte? Elas são obras culturais ou obras de arte? É possível encontrar uma definição de arte fora do campo cultural?

Mesmo sem conseguir expressar uma definição para o termo, somos capazes de apontar para um objeto e identificá-lo como uma obra de arte. Conceituamos arte através de suas produções, da admiração que lhe fazemos. Para isso, utilizamos instrumentos de nossa cultura:
  • O discurso proferido por uma autoridade no assunto (crítico, historiador da arte, perito, conservador de museu, etc);
  • Os locais nos quais a obra é exposta (museu, galeria, cinema de arte, sala de concerto, etc);
  • O reconhecimento de instituições legais (Patrimônio Histórico Artístico Nacional, etc).
Nossa cultura utiliza esses instrumentos para dizer o que é ou não é arte, criando em torno dela um ar de nobreza. O tom enobrecedor dado à arte cria uma hierarquia entre os objetos capaz de nos ditar o que devemos apreciar. Os críticos, por exemplo, não diferenciam arte de não-arte; eles hierarquizam as obras segundo critérios “técnicos”, fazendo surgir ao longo do tempo um consenso sobre o que é arte. No entanto, esse consenso é mutável, evolui com a história. Isso torna-se evidente quando nos referimos a uma produção como obra-prima e, a partir daí, enxergamos nela diferenciais que lhes fazem superar as outras.
Cézanne é tido hoje em dia como um dos maiores nomes da pintura de todos os tempos. Porém, não podemos esquecer que o reconhecimento do seu valor foi tardio: enquanto viveu, o consenso geral recusou-se a julgá-lo positivamente, e esse também foi o caso de Van Gogh, de Gauguin e dos impressionistas – pintores de uma época em que havia justamente um conflito entre os critérios estabelecidos e a obra que eles produziam. (…) O barroco, o maneirismo, o art noveau, o neoclassicismo, entre outros grandes movimentos da história da arte, conheceram trajetórias de forte oscilação entre o interesse e o desprezo.” (COLI, 2006)
Mas qual era o motivo do desprezo? Esses movimentos, seus artistas e suas obras contrapunham os critérios estabalecidos que ditavam como realizar uma obra, o que deveria ser apreciado. A cultura determinava o que era e o que não era arte. Coli (2006) afirma que sem nós, a arte não existiria e que, portanto, ela pode ser compreendida mais facilmente se analisada a cultura na qual está inserida. Dessa forma, o objeto só é artístico se foi aceito como tal pelas autoridades conhecedoras do assunto. Se está no museu, torna-se objeto de contemplação capaz de provocar sentimentos no público. Mesmo a negação da arte, como a obra “A Fonte” de Duchamp, o famoso mictório, torna-se arte ao ser absorvida pelas autoridades e expostas nas intituições competentes. A antiarte é, assim, advinda da vontade de transgredir as convenções da cultura.

Coelho (2008), ao perceber que havia dificuldade em estudar a arte por si mesma, sem os efeitos exteriores da cultura, propôs um quadro genealógico que traduz, de forma resumida, as diferenças existentes entra ela e a cultura. Segundo o autor, a insatisfação pelos resultados fornecidos pela antropologia, pela sociologia, pela psicologia e até mesmo pela filosofia voltavam-se para as semelhanças entre elas. Se a arte viola as regras da cultura, a busca por uma definição para a primeira deve focar focar na diferença entre as duas, na sua discordância. Assim, o discurso de uma autoridade conhecedora, os locais onde o objeto é exposto e o reconhecimento de uma instituição não são pontos de partida para a análise de uma obra.

Uma obra cultural é provida de símbolos que remetem a um passado, a uma história, a alguma coisa externa à obra. Elas tem um significado. Por exemplo, uma estátua pode representar um fato histórico ocorrido no passado. Enquanto isso, uma obra de arte opera de forma inversa: ela possui significantes; ela remete para algo dentro de si mesma. Por essa razão, é efêmera: a sua duração é única, dura enquanto é vista, sentida e praticada. Se repetida, deixa de ser arte. A continuidade de uma sensação caracteriza uma obra cultural, algo que é duradouro, que pode ser reproduzido. Um outro ponto que merece destaque é a distinção entre os sujeitos que produzem a obra: na arte, o indivíduo é o determinante, não o coletivo. Neste último, portanto, os fins são utilitários, sociais, direcionados para atender a uma necessidade específica; ao contrário da obra de arte, que pode surgir como um objeto útil em um determinado momento, mas depois passa a ser somente arte. “O retrato de Mona Lisa pode ter sido documento: como a fotografia hoje, mostrava para outra pessoa, situada em outro lugar, os traços físicos de determinada mulher que vive aqui. Perdida a função documental, restou, nesse caso, a arte.” (COELHO, 2008)

Dessa forma, então, podemos enquadrar o desprezo pelas obras de Van Gogh, Cézanne, Gauguin e os impressionistas da época: a sua obra não apresentava utilidade, pois ela continha apenas em si mesma, não se relacionava a um evento exterior a ela, eram obras de arte. Os artistas que se enquadravam nos critérios estabelecidos da época não tinham um fazer artístico, apenas repetiam fórmulas. A partir do quadro de Coelho (2008), podemos inferir que esses artistas eram, portanto, inventores, eles descontruiam algo existente, não se tratava de uma repetição. A arte é o rompimento com o que já existe.

Ambos os autores convergem para a definição da arte como a violação das convenções da cultura. No entanto, Coli (2006) utiliza elementos da cultura para propor uma definição de arte, focando as semelhanças entre elas. Contrariamente, Coelho (2008) apresenta as diferenças entre arte e cultura e, a partir delas, delinea um conceito para a primeira. Embora utilize elementos culturais nos argumentos, dos quais o próprio autor afirma ser difícil de dissociar, o foco é a divergência.

O quadro apresentado por Coelho (2008) indica a estética como natureza, finalidade e/ou alcance em mais de um ponto que possa diferenciar a obra de arte da obra cultural. Coli (2006) e Janson (2007) apontam o uso de estética como uma fragilidade na definição de arte. O próprio autor cita a insuficiência de resultados obtidos pela filosofia para criar o seu quadro. E, no entanto, utiliza um termo em si dotado de contradições e conceitualizações não claras para diferenciar uma obra de arte de uma obra de cultura. Além disso, Coelho (2008) lista uma importante limitação no fim do livro: em alguns casos, a separação entre obra de arte e obra cultural não será totalmente possível. Uma determinada obra pode possuir características de uma e de outra, situar-se entre os dois pólos extremos. Recai, portanto, no mesmo problema observado na tentativa de categorizar a obra de arte segundo um “ismo”, que aproxima artistas e obras em torno de aspectos comuns, não sendo, dessa forma, definição. É mais fácil explicar o “ismo” pelo que ele não é, ou contra o que está reagindo, do que expor suas principais características. Uns são bem definidos, outros mostram-se vagos (LITTLE, 2010). A análise dos conceitos aqui estudados mostra o que os próprios autores mencionaram:
“(...) De fato, existem muitas respostas disponíveis, mas estas ou divergem ou se contradizem, quando não pretendem instituir-se como solução única.” (COLI, 2006)
Referências

COELHO, Teixeira. A cultura e o seu contrário: cultura, arte e política pós-2001. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2008.

COLI, Jorge. O que é arte. São Paulo: Brasiliense, 2006.

JANSON, H. W. Introdução. In: ____. História Geral da Arte: O Mundo Antigo e a Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 11-34.

LITTLE, Stephen. Ismos: para entender a arte. São Paulo: Globo, 2010.

Notas 
*  Aluno do curso Bacharelado Interdisciplinar em Artes, pela Universidade Federal da Bahia. Ensaio redigido como requisito para aprovação na disciplina Ação Artística I (HACA04).

1  http://fr.wikipedia.org/wiki/Yasmina_Reza

2  Assisti à peça teatral em Salvador há muito tempo, não encontrei uma referência com data precisa. Porém, versões completas da peça estão disponíveis no Youtube. Produção portuguesa: http://www.youtube.com/watch?v=oGEgs79_HO0


quarta-feira, 13 de março de 2013

"Vazio"

A adolescência é um momento único. Hoje, olho para trás e consigo ver além de julgamentos a respeito das escolhas feitas. No geral, gosto de quem fui. Naquela época de medos e descobertas, lembro de uma paixão recíproca, porém não concretizada. Durante o ensino médio, antes chamado segundo grau, apaixonei-me por um colega de outra turma. Éramos da mesma série, mas de salas distintas. Nunca tivemos aproximação, muito menos amigos/colegas em comum, mas os olhares tímidos foram se tornando cada vez mais firmes, conscientes, decididos. Nunca avançamos. Apesar de já ter me descoberto homossexual, não tinha a coragem suficiente para abordar alguém do mesmo sexo, ainda mais se tratando de uma pessoa externa ao círculo de amizades. Ele, pior ainda, namorava uma garota, numa clara necessidade de negar sua orientação sexual. Foi nesse turbulento contexto que me aventurei pelo mundo da poesia. Encantei-me de imediato com Fernando Pessoa e seus heterônimos. Escrevi dois poemas, sempre em momentos de tristeza, os quais estimulavam minha inspiração. Porém, esta minguou logo que ingressei à faculdade de computação. A lógica engoliu a minha emoção. Quem sabe não volto a me aventurar novamente...

Compartilho o meu primeiro poema, chamado "Vazio".


Vazio

Se ao menos eu tivesse um espelho
Para que, através dele,
Eu pudesse enxergar minha alma turva e longíqua
Caminharia tranquilo pelos becos escuros da vida
Porque eu, mesmo não sendo reflexo de minha personalidade,
Sinto-me capaz de guiar minha consciência pela mais sombria escuridão
Se ao menos eu tivesse uma imagem
Tentaria alcançá-la e agarrá-la
Pois, por mais sincera que minha fronte seja
Por mais pureza que revele o meu ser
Eu não possuo um espelho
E, assim, convivo com aparências
Guiado pelo que os cegos dizem.

Escrito por mim, em 20/08/1997, aos 17 aninhos.