quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Desabafo de um ex funcionário da Prefeitura de Salvador

Ele foi meu colega na empresa de tecnologia da Prefeitura de Salvador. No pouco tempo em que trabalhei lá, presenciei os maiores absurdos, típicos de uma empresa aparelhada, cujos chefes eram indicados politicamente. Antônio Imbassahy era o prefeito. Já desligado da administração municipal, tempos depois, com a prefeitura administrada por João Henrique, eu vi a chefe de um dos departamentos da empresa municipal de tecnologia no rio vermelho com a camisa do PT, "comemorando" a reeleição de Lula. Surpreendido com o que vi, respirei aliviado por não pertencer mais ao quadro daquela empresa.

Mas meu colega persistiu, ficando na empresa por doze anos. E tentou executar projetos em prol da população. Sem êxito. Recentemente, uma nova oportunidade de trabalho apareceu-lhe. De imediato, pediu desligamento e enviou uma mesagem a todos os colegas, a qual transcrevo a seguir com o consentimento dele. Para além de uma crítica à política municipal, a mensagem de meu colega apresenta uma reflexão ao que já figura como aspecto da cultura baiana.

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Amigos,

Primeiro lugar um excelente dia e um desejo de um futuro brilhante para todos.

Peço desculpas pela maneira abrupta como estou avisando da minha saída da empresa, mas foi assim que as circunstancias determinaram: fui convocado abruptamente para tomar decisões importantes e entre elas seguir um novo caminho.

Queria agradecer a todos vocês, mais próximos ou menos próximos,  que consciente ou inconscientemente me concederam uma oportunidade ímpar de aprendizado intelectual, humano e espiritual na Prefeitura do Salvador. Tenho muito a agradecer pelo que desenvolvi, não pelo conhecimento técnico (esse que é passageiro e devorado pelas constantes mudanças tecnológicas) mas, pelo conhecimento que obtive das organizações, das pessoas, dos nossos comportamentos, nossos defeitos-erros e nossas virtudes. 

Carrego, como a maioria daqueles que já trabalharam na iniciativa privada, a frustração de não poder ter servido ao público-cidadão com projetos que poderiam tornar  nossa cidade lugar melhor de se viver. Sinto pela crônica resistência da Prefeitura de Salvador em não ter a sua própria Infovia, a Cidade Digital, que traria inestimáveis benefícios às empresas, à prefeitura e  à cidade. Desde 2006, o assunto é de conhecimento de todos (empregados, gestores e políticos).  Eu fiz várias investidas externas e sei que existe uma "resistência" que priva a cidade de um feito, que ao contrário do que se pensa, traria grandes dividendos políticos, econômicos e sociais  muito mais vantajosos do qualquer outro arranjo político que se conceba.  Pode parecer arrogante ou ilusório, mas essa é a minha visão após 08 anos de observação (permitam-me evocar John Lennon mas I'M A DREAMER com muito orgulho).

É estranho ver uma terra que tem a vocação natural para inovar e brilhar, o lugar onde foi inventada a Guitarra Elétrica, que teve o primeiro Centro Espírita do Brasil, onde foi descoberto o primeira fonte de Petróleo do país, onde o mestre da Anísio Teixeira teve a inspiração para propor a Revolução do Ensino, que já teve marca própria de Refrigerante e Chocolate, é muito  frustrante ver a terceira capital do país apequenar-se a tal ponto de se orgulhar apenas do seu "carnaval", seu "acarajé", seu "pelourinho" e da sua dupla "ba x vi". 

Mas o que dizer de uma cidade que no início do século 20  usava bonde como transporte principal, mas em pleno século 21 ainda não concluiu o seu metrô porque o poder político privilegiou o cronograma de interesses privados concorrentes dos trilhos?

O que eu tenho a dizer à classe política de Salvador é que um projeto político vitorioso tem que adotar pelo menos um projeto de repercussão social para fazer história. Podem falar o que quiser do atual Governo Federal, mas ele adotou vários projetos de alcance e um deles é que sustenta a vitória do partido ao longo dos últimos 12 anos. Simples assim, ou se privilegia o financiamento de campanha e seus interesses particulares ou se faz história através de transformações na vida das pessoas. O poder público de Salvador ao deixar de fazer o planejamento da cidade e terceirizá-lo à iniciativa privada (como fez ao extinguir seus órgãos pensantes e a escantear funcionários de carreira)  corre o risco de permanecer por longo tempo uma cidade provinciana e só viver da sua fama de cidade da "festa". 

(...)

Estou por aí, mas ligados a vocês pelo coração e pela Internet!

sábado, 18 de outubro de 2014

A crueldade da opressão feminina em Navalha na Carne

Primeira adaptação de Navalha na Carne, em 1969

Carlos Henrique Nunes Costa

É no quarto de um hotel barato que se reúnem as três únicas personagens da peça Navalha na Carne, de Plínio Marcos. Em meio a cinco mobílias gastas, a prostituta Neusa Sueli, o cafetão Vado e o homossexual Veludo desvelam uma ruidosa dinâmica de opressão, ora no papel de vítimas, ora no papel de algozes. A realidade é apresentada in natura e, por isso mesmo, dota as personagens de grande complexidade. Elas são genuínas feras lutando com seu instinto pela sobrevivência.
Logo nos primeiros diálogos, torna-se evidente a violência presente na relação entre Neusa Sueli e Vado. O tratamento ríspido do cafetão para com a prostituta, não recíproco, levanta suspeita sobre a hierarquia dessa relação e suas consequências. A entrada em cena de Veludo modifica o enlace do casal, reconfigurando as teias de poder existentes, embora ainda sejam a reprodução da opressão social a que estão submetidos.
O texto não encerra uma postura moral; pelo contrário, a moral passa ao largo de toda a trama da peça. Plínio Marcos não valora a situação; ele apenas a apresenta. Assim como sua primeira obra, Barrela, Navalha na Carne apresenta-se como interlocutora de um extrato social invisibilizado no teatro brasileiro daquele período.
Plínio Marcos estreou como dramaturgo em 1959, em Santos, sua cidade natal. Começou a carreira escrevendo peças que retratavam a vida de páreas sociais. O universo de prostitutas, cafetões, loucos, homossexuais, bandidos, marginais vinham à tona através de suas obras. Ao contrário dos dramaturgos da época, que, engajados politicamente contra a Ditadura Militar, alçavam ao estado de herói o proletariado brasileiro, Plínio deu vazão a personagens sem interesse político, sem qualquer propósito revolucionário. Ainda assim, foi visto como uma ameaça ao regime e teve diversas obras censuradas.
Vieira (1994) divide a dramaturgia de Plínio Marcos em três fases: anos 1960 e 1970, cujas peças escritas contêm a maior parte das personagens marginais e desvalidas; 1970 a 1976, período em que se dedicou a musicais; e 1978 a 1988, fase dos textos míticos. Mas foi a primeira fase do autor que o levou, mais tarde, ao reconhecimento, sendo tido como um dos grandes nomes do Teatro da Crueldade, em sua pretensa vertente brasileira.
O teatro da primeira fase de Plínio Marcos caracteriza-se por personagens autênticos, movidos por seus sentimentos. Estando o rancor, o ressentimento, o ódio presentes na dinâmica social desses indivíduos, a violência acaba por se tornar o fio condutor do enredo. Os conflitos são mostrados de imediato, mesmo sem antes delinear o perfil de cada personagem. Os diálogos são providos de um vigor que desnuda com crueza a situação (VIEIRA, 1994).
No Teatro da Crueldade, movimentos, gestos, emoções se expandem; o teatro adquire outra expressividade que não a das palavras. De mera distração, torna-se um meio de questionamento do homem, um olhar voltado para o seu interior (ARTAUD, 2006). E, apesar de não emitir juízo de valor em seus textos, pois suas personagens nada conhecem de moral, as escolhas de Plínio Marcos deixam clara a ideologia que legitima a exclusão social.
Segundo Souza (2009), a ideologia meritocrática vigente, embasada nas premissas democráticas-capitalistas de igualdade e liberdade dos indivíduos, invisibiliza a classe social. Sob o pretexto de igualdade de oportunidades, justificam-se as desigualdades, culpabilizando os oprimidos por sua posição social – vítimas de si mesmos. Essa ideia está incrustada no senso comum de tal forma que os indivíduos marginalizados reproduzem, sem se dar conta, a própria precariedade. Eles acabam por reproduzir em seu meio os esquemas do poder dominante.
Essa condição está presente acintosamente nas obras da primeira fase de Plínio Marcos. Em Navalha na Carne, é percebida ao longo da trama, através do jogo de submissão ao qual cada personagem impõe à outra. A humilhação física e psicológica é uma arma constante para estar no centro do poder. A relação entre eles é tão conflituosa que se torna premente indagar o porquê de Neusa Sueli continuar com Vado, em que se sustenta tal dependência, se existe afeto.
Neusa Sueli sustenta Vado, que diz ser este o motivo de continuar na relação. Portanto, a relação de poder não é, necessariamente, econômica; não para essa classe social. Neusa demonstra não querer perder seu cafetão e não o desmente quando este afirma que “Mulher que quer se bacanear com cara linha de frente como eu tem que se virar certinho”. A dependência é, então, pautada na imagem que Vado traz para Neusa. Ainda que submissa a ele, fora daquele quarto de hotel ela ocuparia uma posição perante as demais colegas de profissão que sozinha não conseguiria manter.
Em determinado momento da peça, Neusa Sueli diz-se cansada da vida que leva. Reclama do comportamento de Vado diante de seu esforço para ganhar a vida. “Duvido que gente de verdade viva assim, um aporrinhando o outro, um se servindo do outro”. Mas, parada na porta do quarto após a saída de Vado, pergunta-lhe, como quem pede, se ele vai voltar. É a inércia frente àquela situação. As personagens não são dotadas de senso político.
Neusa Sueli está distante de representar um modelo de mulher feminista. Ela almeja uma vida como a de todo mundo, inclusive no amor. Mas essa é uma fantasia que nunca será realizada. Ironicamente, ela está “presa” à Vado, seu antagonista, justamente o oposto do amor sonhado. É, portanto, retratada como uma mulher fraca.

Vera Fishcer como Neusa Sueli na segunda adaptação para o cinema.

A ideia de opressão feminina é também reforçada pela personagem do homossexual Veludo. Durante a briga para forçar uma confissão do roubo do dinheiro que Neusa havia deixado para Vado, a prostituta agride o homossexual, arranhando seu rosto. Nesse momento, Veludo ameaça Neusa e diz a Vado que pode enfrentá-la de igual para igual, pois ela é mulher. Soma-se a isso o fato de Veludo ter roubado o dinheiro para sair com um rapaz. Decerto, Veludo também precisa pagar para ter companhia.
Na dramaturgia pliniana, homossexuais e mulheres são elos igualmente fracos, pois dotados de um devir feminino. Embora faça parte de uma classe excluída, o cafetão exerce o papel de dominante. O homem heterossexual e viril subjuga o feminino. Retrata-se, dessa forma, uma hierarquia de gênero não inventada por aquelas personagens, mas ainda assim desempenhada por eles com veemência. Sem perceber, eles reproduzem a teia social do poder dominante que os imobiliza na exclusão. E, convivendo diariamente com essa realidade, passam a aceitá-la e a servir-se dela.

Qual o sentido de autoconfiança que é possível para esses seres humanos que só aprenderam a usar e serem usados? Que tipo de relação consigo mesmos? Que tipo de relação com os 'outros'?” (SOUZA, 2009, 48)

Referências
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Tradução: Teixeira Coelho. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

MARCOS, Plínio. Navalha na Carne. In: ZANOTTO, Ilka Marinho. Plínio Marcos: melhor teatro. São Paulo: Global, 2003.

SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: UFMG, 2009.


VIEIRA, Paulo. Plínio Marcos, a flor e o mal. São Paulo: Firmo, 1994.