segunda-feira, 26 de agosto de 2013

BODYXX - uma experiência trans*cultural

A partir desta quarta-feira (28) até a sexta-feira (30), estará em cartaz a exposição BODYXX - Uma experiência trans*cultural. É o primeiro projeto artístico do qual faço parte da produção. Ele é fruto da avaliação final da disciplina Ação e Mediação Cultural Através das Artes, do Bacharelado Interdisciplinar em Artes, da UFBA. Há muito o que contar sobre essa experiência, mas deixarei para fazê-lo em outra oportunidade. Agora, deixo apenas um convite para aqueles que se interessarem por esse encantador universo.

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Há uma estética homogeneizante dos corpos que dificulta nossa aceitação diante da diferença e, consequentemente, causa sofrimento pela nossa aparência e/ou identidade diante do mundo. O ''The Nu Project'' (http://thenuproject.com), projeto iniciado em 2005 pelo fotógrafo Matt Blum, busca revelar ''corpos de verdade'', mostrando mulheres de vários tipos e indo contra essa homogeinização dos corpos. O objetivo também é a valorização e aceitação dos corpos pelas próprias mulheres. Apesar da variedade de corpos presente no projeto, as mulheres retratadas são, aparentemente, cisgêneras. O fotógrafo e idealizador do projeto explica que o projeto é 100% colaborativo, e que ele não conhece as mulheres que vai fotografar até o dia da sessão, e nunca aconteceu de ser uma mulher transgênero.

A dificuldade de aceitação do próprio corpo não é um problema exclusivo das mulheres, muito menos só daquelas cisgêneras. Homens e mulheres cisgêneros, transsexuais, travestis, cross-dressers, hermafroditas etc, todos os tipos de corpos sentem algum tipo de pressão de tendência homogeneizante, e, por isso, necessitam de auto aceitação e visibilidade. Inspirado pelo ''The Nu Project'' e sentindo necessidade de complementá-lo, o projeto ''BODYXX'' busca um nu sincero dos mais variados corpos, um enquadramento alternativo que não seja tão homogeneizador e biologizante.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

A (des)colonização da história da arte

Carlos Henrique Costa

A colonização europeia instituiu uma supremacia multifacetada perante os países colonizados que vai além do aspecto jurídico-político. Criou-se uma relação de poder capaz de perpetuar uma hegemonia até os tempos atuais, pós-colonização. A independência conquistada pelas colônias não foi capaz de reverter essa condição, presente na economia, na política, na educação, na relação social. Com a arte não foi diferente. Além de se apresentar como quesito de sublevação cultural, tentou-se estabelecer uma única arte válida universalmente, europeia e ocidental, sem diálogo com a arte produzida fora desse eixo. A dominação política configura-se, dessa forma, sob fortes aspectos culturais.

Desde o fim do século XV se reproduz o modelo que considera os conhecimentos produzidos no mundo não-europeu e não-ocidental inferiores. Há um profundo desinteresse dos intelectuais europeus-ocidentais pelos conhecimentos advindos de outras partes do mundo. Diferencia-se, dessa forma, o “Norte” e o “Sul”, o ocidente e o oriente, através de uma relação unilateral dos primeiros para os últimos. As teorias desenvolvidas no “Norte” são impostas ao “Sul” sem considerar as realidades distintas dos países. Institui-se o universalismo, que privilegia um “sistema-mundo ocidentalizado/cristianocêntrico moderno/colonial capitalista/patriarcal” (GROSFOGUEL, 2012). Apesar do caráter integrador que o universalismo possui, sua prática embute um sistema de exclusão.

Segundo Santos (1999), essa exclusão trata das relações de poder horizontais. Ela atua no eixo cultural de dominação. Dessa forma, o diferente é integrado ao mundo europeu-ocidental dentro de um sistema hierarquizado. A desigualdade transforma-se em exclusão.  Apresenta-se um modelo a ser seguido e, ao mesmo tempo, fundam-se normas que impedem a “evolução” dos diferentes. Perpetua-se, então, a relação de submissão cultural, a que Balandier (1993) denominou “situação colonial”.

A situação colonial é a relação entre dominador e submisso mesmo após a descolonização jurídico-política do país. Não se refere apenas a uma dominação econômica, mas fundamentalmente cultural (BALANDIER, 1993). Assim, o termo colonialismo pode ser ampliado para caracterizar toda relação de poder existente, como uma relação política, econômica, sexual, espiritual, epistemológica, pedagógica, linguística e cultural/estrutural de cunho etnorracial. Consequentemente, descolonizar assume o sentido de rompimento da relação social de poder que privilegia as populações euro-americanas em detrimento das demais (GROSFOGUEL, 2012).

A hierarquia impõe uma geopolítica do conhecimento que dita o que é visível e o que não é visível. O lugar de onde se fala – a corpo-política – influencia na magnitude do pensamento (GROSFOGUEL, 2012). Por isso, a produção criativa e intelectual dos países colonizados é sufocada, possui um alcance pequeno, pois controlado. Seguindo esse princípio, a arte também esteve no curso do colonialismo cultural. Ela teve uma história, na maior parte de sua existência, marcadamente eurocêntrica.


Salão do Museu do Louvre, em Paris
A história da arte é um produto da modernidade. Ela teve início no fim do século XIX, no decurso do conceito de estilo, surgido como um atributo que pretendia demonstrar um desenvolvimento da arte em conformidade com uma lei culturalmente estabelecida. O primeiro passo foi buscar no estilo do passado os fundamentos para determinar os princípios que norteariam a história da arte daquele em momento em diante. Assim, voltaram-se aos artistas, às suas vidas e às formas de suas obras de uma época remota. Surgiu daí o contraste entre o que buscavam os historiadores (e também os cientistas e os críticos) da arte e os próprios artistas modernos, para os quais o modelo estilístico adotado não se encaixava (BELTING, 2012).

Ao abordar a visão construída pelo historiador acerca da situação colonial, Balandier (1993) a definiu como uma descrição da mecânica da relação da metrópole com a colônia, focada, sobretudo, no fator econômico. Os processos de resistência e a dinâmica social de poder não foram esmiuçados por eles. Prevaleceu uma visão a partir do dominante, eurocêntrica e ocidental. Os historiadores da arte seguiram o mesmo caminho.
Na maior parte do século XX, a Europa Ocidental e a Oriental não possuíram nenhuma história da arte que pudessem compartilhar entre si ou à qual se referir conjuntamente. A modernidade interrompida em países como a Rússia, cuja vanguarda deu o que falar por algum tempo mesmo no Ocidente, reforçava o equívoco de que a modernidade ocorrera apenas no Ocidente, como se ela não tivesse sido sempre reprimida no Leste, onde, aliás, o transcurso do tempo foi em geral totalmente diferente para cada um dos países da Europa Oriental.” (BELTING, 2012, p. 101-102)

A história da arte sempre foi uma história da arte hegemonicamente europeia. É uma criação de uso restrito e para uma ideia restrita de arte. Ela desconsiderou o clamor artístico por uma representação fidedigna do que ocorriam nas galerias/exposições em todo o mundo. Os artistas do pós-guerra tentavam se desvencilhar dos formalismos instituídos, atacando uma arte tida como elitista, voltada a intelectuais, oficialmente reconhecida nos museus. Fazia-se uma “arte cultural”, de idéias, conceitual, uma arte viva – notadamente, os artistas dos movimentos conhecidos como surrealismo, dadaísmo e outros. Por algum tempo, a produção do artista americano Andy Warhol permaneceu incompreendida pelos europeus. Atualmente, o mesmo ocorre com a arte multimídia, cujas análises confundem-se com a história da tecnologia utilizada no processo criativo (BELTING, 2012). As obras modernas em si são alijadas da história da arte, ainda sob forte influência do modelo europeu ocidental de formalismo arraigado. Quando muito, elas constroem para si uma história da arte alternativa. Dessa forma, o trabalho dos artistas modernos – e daqueles que, em sua época, eram também incompreendidos – constitui-se num claro processo de descolonização da arte.

Com o tempo, reproduz-se o costume de atribuir ao objeto o status de arte se este foi aceito como tal pelas autoridades conhecedoras do assunto  (historiadores, cientista e críticos de arte) e por suas instituições (museus, cinemas de arte, salas de concerto)  (COLI, 2006). O que é e o que não é arte sempre foi determinado culturalmente, e sob um viés colonizador. A dominação cultural da arte cria sua própria hierarquia, fundamentada na ideologia europeia-ocidental instituída no século XIX. O conceito de obra-prima é a determinação de um nível hierárquico superior que seleciona estilos, obras e autores em detrimento dos demais. Além disso, impõe modelos formais de criação. Torna-se normativo. Estabelece uma relação de poder que exclui quem rompe com o estabelecido.   Por fim, não estreita laços com os artistas e seu público, tal qual os intelectuais do “Norte”, que não reconhecem os conhecimentos produzidos pelos intelectuais do “Sul”.

* Leia também o artigo "Afinal, alguém pode me dizer o que é arte?"

Referências

BALANDIER, Georges. A noção de situação colonial. Tradução: Nicolás Nyimi Campanário. Revista plural. PPG Sociologia. São Paulo: USP, 1993.

BELTING, Hans. A modernidade no espelho do presente – sobre mídias, teorias e museus. In: O fim da história da arte – uma revisão dez anos depois. 1a Ed. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 24-198.

COLI, Jorge. O que é arte. São Paulo: Brasiliense, 2006.

GROSFOGUEL, Ramón. Descolonizar as esquerdas ocidentalizadas: para além das esquerdas eurocêntricas rumo a uma esquuerda transmoderna descolonial. Dossiê Saberes Subalternos. Revista Contemprânea: UFSCAR, 2012.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A construção multicultural da igualdade e da diferença. CES – Centro de Estudos Sociais. Coimbra, 1999.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

A reeducação de adultos

Por causa da greve dos professores universitários ano passado, o calendário acadêmico foi alterado e tivemos aulas em períodos nos quais costumávamos estar de férias. Assim, em janeiro deste ano, o meu segundo semestre do curso de Artes, na UFBA, estava a todo vapor. Eu e outros quatro colegas marcamos uma reunião de equipe na área externa de um shopping center para discutir o trabalho que apresentaríamos duas semanas depois. Como de costume, o quórum foi baixo. Apenas eu e um colega fomos ao encontro. Ele me apresentou o trabalho que fazia para uma outra disciplina e conversamos sobre assuntos diversos. Em um deles, tive que corrigir o gênero utilizado para se referir ao meu namorado. Como se sabe, é culturalmente estabelecido que um "homem" deve se relacionar com uma "mulher". É o comportamento esperado, tido como padrão. Eu usava aliança na mão direita e falávamos de relacionamentos, então tive de modificar o gênero que ele havia mencionado, explicitando a minha orientação sexual -- se é que ele ainda não havia percebido. A partir deste momento, ele pediu licença para me fazer algumas perguntas que julgava pessoais.

As perguntas que se seguiram denotaram muita curiosidade. Meu colega aparenta ter entre 35 e 40 anos de idade, negro, morador de bairro popular, policial militar, músico e está fazendo o seu primeiro curso de graduação. Ficou bastante claro o desconhecimento e a imagem convencional por trás das indagações. Lembrou-me uma criança fazendo descoberta, ávida por novidade. Mas se tratava de um adulto, com personalidade e (pré-)conceitos formados.


Estas foram as perguntas feitas, sem acrescentar nem remover uma palavra:
  • Quando você decidiu ser homossexual?
  • Você nunca gostou de mulher?
  • Como é o preconceito social?
  • Você e seu namorado tem a mesma relação de sentimento, carinho e tesão que um homem tem por uma mulher?
  • Como você leva a sua vida?
Entre perguntas e respostas, seguiram-se comentários ainda mais carregados de preconceito, tais como:
  • Ele afirmou admirar homossexuais pela coragem que tiveram de querer ser assim, mesmo eu já tendo dito que não foi uma decisão, assim como a sua orientação heterossexual.
  • Assim como o "swing baiano" -- como ele denomina o pagode, excluindo daí as músicas pejorativas produzidas --, o homossexualismo (sic) também tem suas divisões. Por exemplo, ele detesta as bichas espalhafatosas (sic), relacionando tal comportamento a falta de educação.
  • Ele afirmou também não gostar da promiscuidade de alguns homossexuais.
Opto por não transcrever minhas respostas e comentários. Nelas, tentei ser o mais didático possível, apesar de não me alongar muito nas explicações. Não almejei desconstruir preconceitos, pois não era possível fazê-lo numa conversa rápida e informal na varanda de um shopping. Confesso que tenho tido pouca paciência para fazer isso ultimamente. Mostrei os erros que cometera, mais para aguçar a sua curiosidade, fazê-lo buscar conhecimento. Aquele era um contato inicial, que pode ter sido o primeiro de muitos que ele terá na universidade, com muitos outros colegas de diferentes orientação sexual e gênero, além de discussões levadas por professores. Penso que, como ele, existem muitos outros adultos na universidade precisando ser reeducados. A oportunidade está aí. A minha contribuição está sendo dada.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Súplica

Este segundo poema que apresento veio na esteira de "Vazio". Na verdade, sua concepção iniciou-se antes deste, mas demorou muito, mais de um mês, para que irrompesse da minha mente. Os primeiros cinco versos surgiram primeiro, durante uma noite comum, na qual o sono demorou para manifestar-se. Saí da cama e peguei papel e caneta sofregamente. Parei no quinto verso, reservei toda a estrofe e esperei o momento até que o restante do poema surgisse. E eu não fazia ideia de como se desenvolveriam os versos seguintes. A estrofe criada dava muitas possibilidades, o que tornava ainda mais nebulosa a sua continuidade. Ideias vinham e iam. Até que um dia brotou este que foi o melhor -- o que mais gosto -- poema que já escrevi.

Súplica

Rompe-se dos céus
O soar das estridentes trombetas dos anjos
É o sinal do findar de um império
E despertar dos martírios humanos
O inferno, enfim, vigorará!

Vês, majestade, enganaste a ti próprio
Teus enormes pilares
Que antes sustentavam soberba riqueza
Hoje denunciam rachaduras
Em meio a tão frágil barro com que ergueste

Sintas, supremo rei,
O amargo sabor da traição
Daqueles que devem a ti a existência
E intimamente espalharam teu segredo
Compartilharam da tua fraqueza

Criaste-os como matéria
Domesticaste-os segundo teus ingênuos conceitos
Deste-lhes a carcaça,
O incestuoso corpo
Mas esqueceste de lhes colocar uma alma

Tu não criaste o homem
Criaste o diabo
A tua imagem e semelhança
E vendo quão perfeita era tua criatura,
Descansaste

Estando ilhado de mentiras
Por que, então, não me transformaste em anjo?
Por que rejeitaste tão pura servidão?
Que infortúnio te obrigas a renunciar socorro?
Escolha uma face e responda!

Deus do inferno,
Por que não carregas minha alma contigo
Não me tornas o que carnalmente nunca fui
Um ser feliz,
Para servir-te até a tua morte?

Teu cajado não mais suporta
O peso da tua lamúria
Já não podes acudir a quem te ama
Sentes-te inseguro, tens medo
Quem és, afinal?

Respondo eu a mim mesmo:
- Não és nada!

Finalizado em 27/10/1997, também aos 17 aninhos.