sábado, 27 de abril de 2013

Reeducando o Olhar para a Arte Contemporânea

Carlos Henrique Costa

Minha primeira viagem internacional aconteceu em 2008, na qual visitei quatro cidades europeias em quinze dias: Itália, Inglaterra, França e Holanda. Afora o impacto causado pelas diferenças culturais, foi nessa viagem que passei a gostar de museus e, claro, de artes plásticas. Até então, a arte tradicional passava ao largo de meus interesses culturais. Conheci alguns dos maiores museus do mundo: Louvre, Van Gogh, Vaticano, Galeria Uffizi, Palácio de Versalhes, entre outros. Eles não só continham obras das mais conhecidas, dos artistas mais renomados, mas também eram, eles próprios, uma obra de arte a ser apreciada. Notavelmente, a visita ao Palácio de Versalhes foi a mais marcante. Não somente pelas obras, pelos edifícios, pelas decorações, pelos jardins; o que mais chamou minha atenção foi a exposição temporária de arte pop do artista plástico americano Jeff Koons, cujas obras estavam distribuídas nos diversos salões do palácio, em meio às demais obras da exposição fixa. A imagem abaixo exibe uma obra desse artista exposta naquela ocasião.

Obra exposta no Palácio de Versalhes em 2008
Todas as obras do artista americano contrastavam com o ambiente. Objetos banais, vistos costumeiramente no nosso cotidiano, estavam expostos, alguns em dimensões maiores, utilizando materiais diversos, como o “cachorro feito de bexiga” da ilustração anterior. A minha primeira reação foi de estranheza. Aquelas obras não diziam nada para mim nem para as pessoas que me acompanhavam. Elas pareciam estar no lugar errado. A cada aposento no qual deparávamo-nos com uma produção, ríamos, e também questionávamos o que era aquilo, para quê foi criado, o que fazia ali. Sem respostas. Hoje, após visitar outros museus, alguns específicos de arte contemporânea, ainda me deparo com uma grande dificuldade para interpretar essas obras. O que falta em meu olhar para produzir sentido para as obras vistas no Palácio de Versalhes e em tantas outras exposições de arte contemporânea?


Em busca de um referencial

Através de uma obra, o artista estabelece com o observador uma conexão inconsciente: onde um termina o processo de criação, o outro inicia seu processo de fruição. A criação artística é capaz de provocar reações no observador que variam de acordo com fatores estruturais, sociais e culturais de cada um. Assim, o indivíduo que contempla invoca seu passado da memória, suas vivências, perfazendo um processo de simbolização que recria a obra (PECHANSKY, 2005). Mais do que um simples espectador, o observador de uma obra de arte é também parte de sua criação.

A percepção acionada pelo olhar busca imagens referenciais para imputar sentido ao objeto. Toda forma que percebemos e criamos é acompanhada de uma inevitável valoração. Ao encontrarmos uma imagem referencial, incutimos à obra, de imediato, uma configuração determinada, um ambiente no qual ela costuma estar inserida, seus padrões funcionais, os materiais usados, enfim, todo o sentido estético (OSTROWER, 2008). Essas atribuições são individuais e estão associadas à cultura da qual o observador faz parte. O “cachorro feito de bexiga” assim foi denominado por mim após associá-lo com uma imagem referencial: objetos produzidos por um animador de festa infantil, utilizando bexigas esféricas e longas, para criar formas diversas, como a de um cachorro.

Até aí não há problema algum, pois a imagem real parece conferir com a imagem referencial. Mas as informações complementares trazidas pelo referencial chocam-se com a realidade. O que um “cachorro feito de bexiga” estava fazendo em meio a aposentos reais franceses, dividindo espaço com obras clássicas, de uma outra época? O lugar natural desse objeto seria um salão de festa infantil. Esse conflito impediu-me de produzir sentido estético para a obra.

Ostrower (2008) afirma que “se uma imagem não corresponde ao referencial que temos dela, naturalmente a rejeitamos”. Assim ocorreu com as obras impressionistas, que chocaram o público da época por utilizar combinações diferentes de cores para, por exemplo, representar a pele humana. A imagem criada pelos artistas não correspondia à imagem referencial que o público tinha. Era a quebra de um referencial comum e estabelecido culturalmente. A maioria dos artistas pintavam a pele humana o mais próximo possível do real. Da mesma forma, os visitantes do Palácio de Versalhes não esperavam encontrar em seu interior obras contemporâneas. As peças do artista americano lá expostas tinham o objetivo de provocar os visitantes, quebrar o culturalmente estabelecido e fazer conversar as artes de diferentes épocas.


A cegueira do olhar

Ostrower (1988) declara que compreender algo é criar. Dessa forma, o observador resignifica a obra, atribuindo-lhe um sentido peculiar carregado de suas referências. É por isso que um objeto artístico pode expressar diferentes coisas a cada vez que o observamos. Campos (2006) adentra ainda mais no universo do apreciador. Para ela, o nosso olhar sofre indefinidas clivagens diante do confronto das informações que possuímos com as novas percepções.

No nosso caminhar, carregamos todas as experiências como bagagem, que nos afetam e constroem nossa visão de mundo. Sempre as utilizaremos ao refletir sobre o desconhecido, que não nos inquietará até nele mergulharmos. Por isso, Campos (2006) faz uma analogia com os cristais que, ao se clivarem, formam novas faces. Essa é a síntese da criação artística. Uma obra contém um olhar, carrega uma bagagem de percepções, é o resultado de clivagens. E também o é para o público que a observa, ávido por ver revelado os segredos do artista. Porém, o observador não consegue ver-se distanciado daquela experiência; ele inflige à sua visão o seu próprio repertório de inquietações. Então, estaria incorreto afirmar que eu não consegui atribuir sentido ao “cachorro feito de bexiga”?

As obras de Jeff Koons estavam ali para causar estranheza. Elas suscitavam nas pessoas a percepção de não pertencimento das obras contemporâneas em relação ao todo; elas pareciam estar deslocadas do seu contexto natural. Assim, a sensação que tive de haver no espaço um objeto “estrangeiro” não é inválida. Porém, ainda assim, a inquietação persistiu, a exposição como um todo não fazia sentido para mim. Essa percepção só foi alterada semestre passado, após leituras de textos sobre o conceito de arte e de cultura. Os novos conhecimentos permitiram-me complementar a percepção anterior e compreender a obra. De fato, foi preciso uma alteração no que em mim estava culturalmente estabelecido, conforme Ostrower (2008), ampliando minhas referências, e causando uma nova clivagem ao revisitar as obras (mesmo que em fotografias), o que permitiu a construção de um significado, conforme Campos (2006).


Reeducando o olhar

O homem de hoje é um ser visual. A maioria dos estímulos que recebe é visual. As informações recebidas dão-se sempre pela visão. Dessa forma, o olho age como receptor externo, enquanto o olhar representa o movimento interno, intelectual, de busca de informações e de significações do que é recebido. Então, podem-se distinguir duas ações: o ver-por-ver e o ver-depois-de-olhar. O primeiro é um ato sem intenção, é enxergar mesmo que involuntariamente, através de estímulos luminosos. O segundo, e mais importante, é o conhecer, reconhecer, medir, definir, caracterizar, interpretar, em suma, pensar (BOSI, 1988). 

Nas cidades contemporâneas, tudo é imagem. Os estímulos luminosos chegam rapidamente, a todo o momento, em todos os lugares, e se vão com a mesma rapidez.  A velocidade do dia a dia torna a interação com o mundo algo efêmero: vê-se mais, olha-se menos (PEIXOTO, 1988-I). As imagens são produzidas para consumo imediato. As informações nelas embutidas são diretas, rasas, de fácil e rápida assimilação. O olhar é pouco incitado. O ver tornou-se lugar-comum.

“Tudo só existe na superfície sem fundo da imagem”, disse Peixoto (1988-I) ao argumentar que não se produz/procura mais o conteúdo, contenta-se apenas com a casca, com imagens que não tem tempo. Assim, estamos acostumados a parar diante de um objeto artístico e exigir dele próprio um rápido significado. Não nos enxergamos coautores daquele trabalho, cujo significado é dado igualmente pelo artista e pelo seu público. Tratamos a arte como uma propaganda, algo que dura trinta segundos em uma televisão, cinco segundos em um cartaz afixado na placa publicitária de uma movimentada avenida, e que passa de forma direta e clara a sua mensagem. Assim, formamos poucas imagens referenciais (OSTROWER, 2008), temos bagagens mais homogêneas que tornam a interpretação das coisas também mais superficiais (BOSI, 1988). 
É preciso ter tempo para perceber a força e a atmosfera que emanam dos rostos e da paisagem. Só assim é possível captar o drama interior das pessoas e a serenidade dos lugares. Tudo aquilo que não se estampa de imediato.” (PEIXOTO, 1988-II, p. 305)
Na rampa de saída de minha empresa, logo que passamos a porta, nos deparamos com um jambeiro. Ali, na sua copa, todo fim de tarde, dezenas de pássaros se amontoam e cantam e voam, em meio ao barulho de uma das vias mais movimentadas da cidade, a paralela. Ao sair do trabalho, ávidas por ir para casa, para o bar, para o shopping, ocupadas com os próximos compromissos assumidos, poucas pessoas dão-se conta da festa que ocorre. Perdemos a percepção para os gestos cotidianos, que são lançados ao banal. E a arte também se encontra entre esses gestos.

Esperamos da “arte” nada mais que um momento de efusão emocional, porém passageiro, voltado para o entretenimento. Antes da viagem à Europa, em 2008, eu achava a visita a museus um programa chato. Era coisa de pseudo-intelectuais. Eu não interagia com a arte brasileira em geral, quiçá a local, de minha cidade. Meu repertório resumia-se ao que era oferecido como produto, consumido pela maioria das pessoas que me rodeavam. Ao me colocar na situação de estrangeiro, no entanto, senti-me instigado a conhecer os tão conhecidos museus. A minha bagagem cultural foi aumentando, a vontade de conhecer também. Passei a frequentar mais os museus, as livrarias, o cinema, o teatro, os shows dos mais variados estilos musicais. Ampliei minhas referências. À medida que observava as obras, a minha percepção sobre elas aumentava – não por possuir conteúdo teórico, mas por estar mais aberto às provocações e dispor mais tempo para senti-las. Sendo este um movimento incessante, o estranhamento causado por obras contemporâneas tende, portanto, a diminuir.

Referências Bibliográficas

BOSI, Alfredo. Fenomenologia do Olhar. In: NOVAES, Adauto et al. O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. P. 65-87.

CAMPOS, Elisa. Planos de Clivagem: Uma Abordagem sobre o Olhar. In: Concepções contemporâneas da arte. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

OSTROWER, Fayga. A Construção do Olhar. In: NOVAES, Adauto et al. O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. P. 167-181.

OSTROWER, Fayga. Caminhos intuitivos e inspiração. In: OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 2008. P. 55-76.

PECHANSKY, Isaac. O Impacto Estético: Um Olhar Psicanalítico. In: PECHANSKY, Clara. A face escondida da criação. Pelotas: Universitária, 2005. P. 113-125.

PEIXOTO, Nelson Brissac. O Olhar do Estrangeiro. In: NOVAES, Adauto. O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. P. 361-365.

PEIXOTO, Nelson Brissac. Ver o invisível: a ética das imagens. In: NOVAES, Adauto. O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. P. 301-319.



quinta-feira, 18 de abril de 2013

A Cultura do Vazio

Carlos Henrique Costa

A capa da edição 734 da revista Carta Capital (Ilustração 1) já deixa clara a sentença dada pelos juízes-jornalistas ao tema. O martelo foi batido: a cultura brasileira atual é estéril. O título “O Vazio da Cultura (ou A Imbecilização do Brasil)” é mostrado dentro de uma moldura vazia e, ao seu lado, retratos de artistas renomados, de uma outra época. Esses elementos são, por si só, suficientes para o leitor sentir-se no século XVIII, quando a discussão em torno do conceito de cultura começou e se fortaleceu no século XX. Embora seja um tema até hoje debatido, percebe-se que ainda há quem recorra aos conceitos iniciais para defender gostos pessoais, por vezes carregados de argumentos preconceituosos.

Capa da edição 734 de Carta Capital

Na Era das Luzes, no século XVIII, pensadores franceses apregoaram que a cultura é alcançada mediante um conjunto de práticas, como artes, ciências, técnicas, filosofia e ofícios. Buscar essas práticas era sinal de progresso, evolução social. Dessa forma, instituía-se uma referência a ser perseguida pelas demais nações. A cultura era, então, medida do grau de civilização de uma sociedade (CHAUÍ, 2008). Assim, também segundo Cuche (2002), ela era considerada um “processo que arranca a humanidade à ignorância e à irracionalidade”. Enquanto a cultura evocava o progresso individual, a civilização evocava o progresso coletivo. O primeiro era insistentemente incentivado para se alcançar o segundo.

A antropologia nascida no século XIX reforçou o conceito Iluminista e estabeleceu a Europa capitalista como modelo de progresso, de cultura evoluída. Com isso, legitimou-se a colonização e o imperialismo (CHAUÍ, 2008). Estava instaurada, de forma explícita, uma hierarquia: culturas que não seguiam os valores capitalistas europeus, com forte apelo para as artes e as ciências, eram consideradas inferiores. Thompson (1999) afirma que o termo “cultura” tinha um uso elitista, voltado para reverenciar a nobreza intelectual europeia. Esse etnocentrismo levou pensadores Alemães, descontentes com seus nobres inspirados nos costumes franceses, a conclamar uma identidade nacional que reunisse as múltiplas culturas lá existentes. Pela primeira vez, o termo era utilizado no plural, com conotação de diversidade. A ideologia alemã visava, assim, devolver o orgulho ao seu povo, até então muito influenciado pelas ideias francesas (CUCHE, 2002).

O fim do etnocentrismo deu-se apenas no século XX com o aparecimento da antropologia social e da antropologia política. A partir de então, os europeus passaram a incorporar os conceitos dos filósofos alemães, nos quais o homem era considerado um agente histórico produtor de símbolos (CHAUÍ, 2008). Apesar da aceitação dos pensamentos alemães, as duas vertentes do conceito de cultura – a alemã particularista e a francesa universalista – são ainda hoje muito utilizadas. Mesmo com o reconhecimento da diversidade e da necessidade de valorização individual, a (des)qualificação das culturas permanece em muitas análises de especialistas e autoridades, moldando uma estrutura hierárquica e tecendo um ideal superior a ser perseguido.

A matéria principal de Carta Capital, de autoria de Rosane Pavam, editora de Cultura da revista, é um exemplo desse discurso. Ela é composta de três artigos e duas entrevistas. Rosane é autora do primeiro artigo, cuja finalidade é introduzir o tema debatido por especialistas (autoridades no assunto) nos textos posteriores. Foram convidados Vladimir Safatle, filósofo e colunista da mesma revista, Daniela Castro, escritora e curadora independente, além de Kleber Mendonça, diretor do filme “O Som ao Redor”, e Alfredo Bosi, crítico e professor emérito da Universidade de São Paulo. Embora envolta de grandes nomes da área artístico-cultural, a editora resvala no senso comum ao valorar a arte/cultura, enaltecendo em algumas afirmações nada além do que o seu próprio gosto.

O título do artigo introdutório prediz a análise conclusiva de Rosane. Em “O belo não está à venda” vê-se claramente o uso de uma palavra que denota um julgamento estético. O que a autora considera como “belo”? Tudo indica que a arte será reduzida ao que lhe é agradável aos sentidos, tendo, portanto, um caráter meramente pessoal. Nota-se o mesmo deslize no subtítulo, “A submissão ao mercado impede que a arte relevante apareça”. Aos menos atenciosos, o deslize pode passar despercebido, já que é consenso o preterimento da indústria cultural a certos bens simbólicos.  Mas caracterizar uma arte como relevante seria preterir um conjunto de obras a outras, teria o mesmo efeito do mercado.

Chauí (2008) afirma que o capitalismo global instituiu uma divisão cultural marcada por relações de poder entre cultura dominante e dominada, opressora e oprimida, de elite e popular, formal (ou letrada) e popular (a que é produzida espontaneamente). Todo bem cultural é, então, acompanhado por um valor de mercado. Por isso, há obras raras e caras, destinados a privilegiados, formando uma elite cultural. Por outro lado, há obras baratas e comuns, produzidas em série, destinadas à massa. Portanto, a editora cultural do semanário está correta ao afirmar, no subtítulo e no decorrer do seu texto, que o mercado dificulta o acesso de todos às diversas manifestações artísticas. Mas, ao qualificar como relevantes as obras inacessíveis à maior parte da população, ela repete o erro intencional da indústria: reafirma uma segregação entre elite culta e massa inculta e coloca em extremos o erudito e o popular, sem sequer considerar a interação entre ambos e os pontos que possuem em comum.

No início do texto, Rosane Pavam narra de forma sucinta a formação democrática brasileira frente ao capitalismo e declara que “tivemos períodos artísticos de brilho em condições adversas”, que “a cultura brasileira ainda não conheceu o seu apogeu” e, portanto, não é possível lamentar a sua decadência. Começa, então, a citar artistas renomados que, para ela, são referências culturais. Mas o são também para aqueles que saíram da condição de miséria e são hoje classificados como classe média? As “referências” culturais não são universais, principalmente em um país diverso como o Brasil. Apesar disso, ela afirma haver um “vazio cultural” ou, na tentativa de abrandar seu julgamento, um “vazio de relevância” – a palavra adjetivante aparece aqui mais uma vez.

Diversos outros trechos podem ser transcritos para confirmar a tendenciosa imposição do gosto pessoal da jornalista aos leitores. Em um deles, ela afirma:
As obras essenciais negam a arte como mercadoria, a massificação cultural, daí se encontrarem interditas em guetos de produção, impedidas de crescer. Mas as resistências se ensaiam neste momento, por exemplo, na música paraense tanto quanto na carioca ou paulista, e outros exemplos se somam, ainda que sob relativa escuridão.” (PAVAM, 2013, p. 42)
Diante deste trecho, pode-se imediatamente questionar: quem produz e quem consome tais obras classificadas como essenciais? E quem consome as obras classificadas como irrelevantes? A autora não entra nesse mérito.

Em um determinado momento do documentário “Os Doces Bárbaros”, de Tom Job Azulay, que relata os acontecimentos do show comemorativo dos 10 anos de carreira de Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa e Caetano Veloso, que percorreu as principais cidades brasileiras, o grupo participava de uma coletiva de imprensa em São Paulo, onde seria a estreia da turnê, e um jornalista perguntou-lhes se aquele seria apenas mais um produto feito para consumo imediato. Caetano, então, retrucou: “Mas é claro que é mais um produto”. Insistindo no tema, o jornalista pergunta se não é mais um trabalho feito para tocar no rádio. Caetano responde novamente: “Claro, como todo mundo. Não conheço ninguém que faça o oposto”. Gilberto Gil, incomodado com a pergunta, diz que sempre compõe músicas para tocar no rádio, mas, infelizmente, nem todas são executadas. Baseando-se na resposta dos músicos, qual seria o sentido de produzir uma obra se não esperar que ela seja apreciada por um público e que chegue a tantas pessoas quanto possível? E a apreciação, gerada uma sensação esperada no observador, pode resultar no consumo, ou seja, na compra da obra. Assim, não é possível conceber um artista que não crie esperando reconhecimento e retorno financeiro de seu trabalho, independente de estar ou não se valendo das tendências do mercado para tal.

Um outro ponto a ser considerado no trecho do artigo da revista é o uso da música “essencial” como forma de resistência à música “irrelevante” produzida pela indústria. Ela cita cidades onde essa resistência estaria ocorrendo. Não por coincidência, essas músicas devem contrapor-se à aparelhagem paraense, ao funk carioca e ao pagode romântico paulista. Estes são os produtos culturais depreciados pela autora.

Em se tratando de definição de arte, Coli (2006) afirma que ela pode ser compreendida mais facilmente se analisada a cultura na qual está inserida. Dessa forma, o objeto só é artístico se foi aceito como tal pelas autoridades conhecedoras do assunto. Se está no museu, por exemplo, torna-se objeto de contemplação capaz de provocar sentimentos no público. Mesmo a negação da arte, como a obra “A Fonte” de Duchamp, o famoso mictório, torna-se arte ao ser absorvida pelas autoridades e expostas nas instituições competentes. A antiarte é, assim, advinda da vontade de transgredir as convenções da cultura. O que é e o que não é arte é, então, determinado culturalmente. Sem a cultura, a arte não existiria. E, portanto, valorá-la como irrelevante é ignorar o significado que ela possui no público que a observa/frui/consome.
Podemos dizer também que a arte, em certos casos, torna-se insígnia de uma 'superioridade' que um grupo determinado confere a si mesmo. Interessar-se pela arte significa ser mais 'culto', ter espírito 'mais elevado', ser diferente, melhor que o comum dos mortais.” (COLI, 2006, p. 105) 
Ser apreciador da relevante, essencial, genuína arte é status. Os integrantes do seleto grupo de apreciadores precisam defender a qualidade artística das obras que consomem, utilizando por vezes discursos técnicos, no intuito de manter-se afastados do que é tido como “vazio”, normalmente consumido por camadas da população de posição social mais baixa. Ao comparar os artistas do presente e do passado, Rosane Pavam desconsiderou os diferentes contextos sócio-políticos. O capitalismo de antes não é o mesmo de hoje, em que os bens simbólicos são apropriados por empresas e transformados em produtos. Nesse aspecto, qualificar um bem cultural como (ir)relevante é voltar no tempo e reafirmar o conceito Iluminista de cultura, no qual era necessário educar o “povo” para torná-lo culto, um apreciador da “boa arte” e conhecedor das ciências. É manter-se afirmando um conceito que exclui intencionalmente uns e eleva outros bens culturais por mero preconceito. É perpetuar a Cultura do Vazio, que supostamente aflige o país. O artigo da Carta Capital peca ao tratar a arte como uma disciplina estática, que não acompanha as mudanças culturais.

Referências
COLI, Jorge. O que é arte. São Paulo: Brasiliense, 2006.

CUCHE, Denys. Gênese social do termo e da ideia de cultura. In: A noção de cultura nas ciências sociais. 2a. Ed. (trad. Viviane Ribeiro). Bauru: EDUSC, 2002, p. 9-31.

CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia. In: Coleção Cultura é o quê?, Egba – Secretaria de Estado da Cultura da Bahia, Salvador, 2008.

THOMPSON, John. Ideologia e Cultura moderna: Petrópolis, Vozes, 1999.

PAVAM, Rosane. O belo não está à venda. Carta Capital, n. 734, p. 40-42, fev. 2013.

domingo, 14 de abril de 2013

A saída do armário de Daniela Mercury e o discurso de denegação

Vou voltar um pouco no tempo. Não muito, apenas uma semana. Domingo passado, 7 de abril, após uma sessão de cinema, em um café, eu e meu marido conversávamos com amigos a respeito da 'saída do armário' de Daniela Mercury. Um deles demonstrou, antes do encontro, estar ansioso por esta conversa. Queria emitir e ouvir a opinião dos demais. Pouco depois de iniciado o assunto, ele questionou o ato da cantora, desconfiando se tratar de uma jogada de marketing.

Agora, salto para a terça-feira seguinte, 9 de abril, aula de ginástica laboral em uma sala reservada da empresa. Eu e mais 7 colegas analistas de sistemas estávamos presentes. Ao todo, 7 homens e 1 mulher. Durante os exercícios, ouvimos Ana Carolina ao fundo. A primeira música a tocar se chama "Homens e Mulheres" e diz "Eu gosto de homens e de mulheres / E você, o que prefere?". Duas músicas depois, ouve-se "Eu Comi a Madona", na qual a cantora, entre outras coisas, diz "Me esquenta com o vapor da boca / E a fenda mela / Imprensando minha coxa / Na coxa que é dela (...) Fui eu quem bebi e comi a Madona". Silêncio absoluto. Ninguém tece um comentário sequer. Ao fim da aula, a instrutora, sem nenhum estímulo aparente ao assunto, fala do 'caso' Daniela Mercury em tom de piada. Ela afirma se tratar de uma síndrome de abstinência midiática, pois a cantora certamente queria voltar ao foco da grande mídia.

Daniela Mercury e sua esposa apoiando o Casamento Civil Igualitário.
Antes que o assunto se desenvolvesse, eu me retirei da sala onde ocorria a ginástica laboral. Não sei como terminou o assunto, quais comentários vieram após o da instrutora. O fato é que o corrido na empresa, na terça, tem muito em comum com o ocorrido no café, no domingo. O que meu amigo homossexual teve em comum com a instrutora heterossexual? O discurso de denegação, repetido à exaustão, e coberto por uma fina camada de modernidade, um véu progressista -- representado na terça pelas músicas de Ana Carolina e no domingo pelo comportamento espontâneo exibido em público.

Daniela Mercury teve curto período de grande popularidade, no início da carreira. Atualmente, quando se fala de um trabalho artístico seu, de imediato alguém torce a boca, diz ser ela insuportável, que trata mal os fãs e por aí vai. Seguem-se inúmeros relatos de grosseira gratuita. A produção artística da cantora é costumeiramente sobrepujada por seu temperamento. No entanto, isso não deveria influenciar no julgamento de seu trabalho e de todos os seus atos pessoais. Daniela é embaixadora da UNICEF no Brasil e possui projetos sociais voltados para crianças carentes, o que é ignorado por quase todos. Sem falar em diversas declaração favoráveis aos direitos de minorias anteriores à atual polêmica. Ao assumir publicamente a sua relação com Malu Verçosa, Daniela Mercury tornou este ato político e não há meio de negar a contribuição advinda disto.

A notícia da relação homoafetiva virou manchete de jornais e revistas. Em pouquíssimo tempo, Daniela estampava a capa dos hebdomadários mais vendidos, dava entrevistas aos principais telejornais nacionais. Nas redes sociais, o assunto ganhou ainda mais destaque. É claro que isso contribui para a carreira da cantora, que estava distante da mídia. Mas existem também contribuições valiosas para a luta das minorias LGBTTT e isso não pode ser ignorado. Afirmar que a cantora tornou pública sua relação homossexual com o único intuito de se promover é, no mínimo, uma tentativa de desqualificar, diminuir politicamente o ato. Os prós para sua carreira são ínfimos diante do conteúdo político embutido em sua declaração, principalmente se levado em consideração o atual contexto político brasileiro. É preciso ter cuidado com essas afirmações, pois elas escondem um discurso preconceituoso e, repetidos por gays, podem representar um tiro no próprio pé.

domingo, 7 de abril de 2013

Quero ver você passar... bem longe daqui


Carlos Henrique Costa

As festas são uma oportunidade para reforçar as diferenças sociais. Os indivíduos mostram publicamente, nestas ocasiões, seu prestígio social e seu poder. Do Brasil colonial até os dias atuais, a maior festa popular do país, o carnaval, exibe a olho nu a segregação existente na sociedade. A história do carnaval reflete a opressão às minorias, ampliada atualmente pelos interesses econômicos sob a folia. A cada ano, os blocos afros sofrem dificuldade para ir às ruas no carnaval de Salvador. Sem patrocínio, com uma ajuda pífia do governo e com os piores horários de desfile, a cultura afro é agora disseminada pelas músicas cantaroladas pelas estrelas da axé music e pelo orgulho identitário da baianidade nagô. Nesse contexto de segregação cultural, o projeto de criação de um circuito exclusivo para os blocos afros, intitulado Afródromo, pleiteado pela Liga dos Blocos Afros, apresenta-se como uma tentativa idêntica de separar essas entidades, afastá-las do circuito comercial, no qual a mídia, os patrocinadores, as autoridades e os demais foliões poderão desfilar seu prestígio e ostentar sua posição social com toda a tranquilidade.

No período colonial1, as celebrações que ocorriam mobilizavam toda a cidade. Era comum as autoridades da época solicitarem aos moradores ornamentar a fachada de suas casas com “luminárias”. Nas regiões mais ricas da colônia, os comerciantes ornamentavam até as praças públicas num claro intuito de mostrar o seu lugar na comunidade. Assim, o comerciante que oferecesse mais “luminárias”, mais status adquiria em relação aos demais e mais poder reafirmaria em relação à comunidade. Os festejos eram, portanto, oportunidades de manifestar as relações de poder existentes nas cidades.

A história do carnaval2 é também marcada por relações de poder. Independente da época, a elite sempre deteve o controle do processo de legitimação da festa. Ela dizia o que se podia e o que não se podia fazer, criando uma separação entre as classes sociais. Com o apoio do Estado, tentava a todo custo civilizar a barbárie do entrudo e demais manifestações populares. Na década de 1920, por exemplo, o Corso era a principal manifestação carnavalesca da elite. As famílias burguesas desfilavam em seus longos carros pela Avenida Central, no Rio de Janeiro, com vestimentas luxuosas. Os grupos populares que quisessem participar tinham que se contentar com o espaço entre a fila de veículos e os canteiros centrais da avenida. Anúncios nos jornais, publicados pelo chefe da polícia local, advertiam os participantes do impedimento que seus grupos poderiam causar aos veículos do Corso ao tentar desfilar na mesma avenida. O preço a pagar pela desobediência era a expulsão do local. O único dia permitido para que os grupos populares desfilassem era a segunda-feira, mas só a partir das 21 horas.

O espaço do desfile sempre foi uma briga entre grupos populares e da elite. No carnaval de 2006, em Salvador, o cantor Bell Marques, vocalista da banda Chiclete com Banana – bloco de trio cujo associado desembolsa mais de dois mil reais para brincar três dias –, com a ajuda da Polícia Militar que fez um cordão de isolamento, impediu o bloco Afoxés Filhos de Gandhy de adentrar à avenida Carlos Gomes. O motivo seria o atraso que o afoxé vinha causando no desfile do bloco de trio por seguidos anos. A regra que definia a ordem de desfile das entidades favorecia ao afoxé. Foi, portanto, uma clara demonstração do poder econômico, sob a égide do Estado, que deixa cada vez menos espaço para blocos carnavalescos de menor expressão de mercado, mas não menos tradicionais.

O Afoxés Filhos de Gandhy é um dos integrantes da Liga dos Blocos Afros, associação que reúne os blocos carnavalescos que sofrem dificuldades para desfilar todos os anos e cujos foliões são, em sua maioria, pessoas de baixa renda, negros. Deslocados do circuito comercial da festa, com pouca possibilidade de conseguir patrocínio, pois lhes são concedidos os piores horários de desfile, o que não lhes assegura visibilidade, contam somente com a ajuda do governo para ir às ruas. Na tentativa de devolver o prestígio para essas entidades, a Liga apresentou à Prefeitura de Salvador um projeto de criação de um circuito exclusivo, dedicado aos blocos afros, chamado Afródromo. As autoridades reservaram o comércio, espaço nunca utilizado para a festa, com graves problemas de infra-estrutura – as políticas de preservação dessa área não surtiram efeito até então.

Única entidade a rechaçar a ideia do Afródromo, o bloco afro Olodum, representado por seu presidente João Jorge, considera esta uma reivindicação contraproducente3. Para ele, os blocos afros deveriam pleitear um patrocínio equitativo, a distribuição mais justa dos recursos públicos destinados à festa, a revisão da ordem do desfile para dar visibilidade a todos. Enquanto prevalecer o privilégio imposto pelo capital, a segregação continuará.
Logotipo do projeto.
O carnaval de Salvador sofre forte apelo econômico. Todos querem lucrar com a festa. Assim, privatiza-se o espaço público, ocupam-se cada vez mais as avenidas com os grandes blocos de trio, verdadeiras marcas que espremem o folião pipoca e reservam menos espaço para as entidades afros. Do colonialismo ao capitalismo, o poder econômico sobrepuja a alegria. Assim como o Corso, os trios de corda espremem os foliões-pipoca e detêm o controle do processo de legitimação da festa. Nesse sentido, o projeto de criação do Afródromo ajuda a reafirmar a relação de poder existente e não soluciona os problemas das entidades de menor poder econômico.

O Afródromo causará um isolamento, prejudicial ao conceito de interculturalidade, no qual as diferenças são expostas e confrontadas. Se o projeto for executado, os blocos integrantes da Liga dos Blocos Afros persistirão invisíveis na folia, com os mesmo problemas para pôr-se nas ruas. O novo circuito não será uma ilha isolada, onde um carnaval totalmente independente acontecerá. Ele representa apenas a ilusão de que uma solução foi tomada. Enquanto isso, os blocos de trio continuarão desfilando seu poder aquisitivo pelas principais avenidas da cidade.

Notas

1 Conforme Mary Del Priore em “Festas e Utopias no Brasil Colonial”, publicado em 2000 pela editora brasiliense.
2 “O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro”, de autoria de Felipe Ferreira, conta em detalhes a história da maior festa popular do país.
3 O posicionamento de João Jorge pode ser conferido na entrevista que concedeu à Folha de São Paulo em 11/02/2013, disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/93300-a-bahia-virou-a-terra-de-uma-artista-so-ivete-sangalo.shtml.