domingo, 8 de março de 2015

As fronteiras do efêmero no arrocha

Artigo escrito como avaliação da disciplina HACB23 - Arte e Cidade, ministrada pelo Prof. Joaquim Viana.

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As fronteiras do efêmero no arrocha
Carlos Henrique Nunes Costa

Na edição II do Colóquio Internacional Fronteiras Geopolíticas e Geoartísticas, realizado em 07 de outubro de 2014, o crítico de arte e estética François Soulages proferiu uma palestra, na qual definiu a cidade como elemento vivo, sempre em movimento, um organismo complexo em constante progressão. Arquitetos costumam tratar-lhe segundo uma visão mecanicista, cartesiana, uma simples composição geométrica. No entanto, o aspecto do urbano pode ser aliado ao efêmero, observando a cidade como um ser biológico que sofre mutações. Mais do que um conjunto de blocos, quarteirões e vias, a cidade é assunto da cultura; é o motor efêmero e metamorfoseado da cultura (SOULAGES, 2014).

Observar o uso dos espaços públicos é uma forma eficaz de verificar como a cidade é um organismo vivo. Os canteiros centrais das grandes avenidas são locais cujo objetivo é transgredido frequentemente pela população. Os semáforos instalados ao longo da avenida Antônio Carlos Magalhães, por exemplo, com suas faixas de pedestres, obedecem a uma lógica cartesiana de modelar os caminhos possíveis de se tomar. Essa lógica obedece exclusivamente à necessidade de fazer fluir os automóveis e fazer chegar às corporações o meio de obtenção do lucro. Não se avalia o atendimento da necessidade dos pedestres, os caminhos que percorrem usualmente, para facilitar-lhes a mobilidade. Por isso, é comum ver pessoas atravessando a avenida fora das faixas de pedestres, distantes dos semáforos, andando pelo canteiro central em busca de um percurso otimizado ao seu destino.

O Estado considera os desvios do caminho instituído como infrações e, assim, constrói cidades meramente cartesianas, que impõem a mecanização dos corpos. Esses movimentos adversos constituem, segundo Viana Neto (2013-2), experiências emancipatórias que fissuram o dimensional do Estado, provocando rupturas nos signos icônicos. A todo momento, micropolíticas emancipatórias confrontam a macropolítica do poder e vice-versa, num jogo de ação-reação.

O centro da cidade (ou mesmo a noção de centralidade) corresponde ao espaço geopolítico de afirmação da identidade hegemônica. A estetização dos espaços públicos e privados busca a modelização global icônica da cidade. Contudo, há poderes invisíveis que questionam as fronteiras (Viana Neto, 2013-1). A ocupação dos pontos de ônibus, locais de aglomeração de pessoas, principalmente em horário de pico, por parte de ambulantes, é um exemplo de micropolítica de resistência. Banidos da possibilidade de constituir negócio, seguindo os trâmites formais excludentes, os ambulantes comercializam produtos diversos: bebidas, alimentos, música, vídeos. Essa ação contribui para o rompimento das fronteiras e explicitam a organicidade, o efêmero das cidades.

A resistência ao identificado, fichado, reconhecido provoca ruptura com os consensos superficiais e sedutores da subjetividade dominante. Expõe novos e diferentes modos de vida, nos quais as leis de Estado são depostas (Viana Neto, 2013-2). Os espaços públicos e privados são, dessa forma, remodelados, transformando-se em naturais palcos de microrrevoluções emancipatórias, onde a subjetividade atinge, também, o campo artístico.

Garis Burgi, em seu trabalho “Né dans la rue, mort chez cartier”, discute as fissuras fronteiriças que a arte produzida por grupos invisíveis socialmente causa, através dos murais grafite. Para isso, ele distingue o ser-fronteira e o ser-sem-fronteira, sendo este último responsável por questionar as fronteiras estéticas e morais do senso comum dominante. A arte produzida nas ruas irrompem uma discordância com a arte institucionalizada dos museus, galerias e seus especialistas. “A rua é uma galeria a céu aberto”, afirma Burgi (2014).

Seguindo o mesmo pensamento de Burgi, pode-se inferir que os pontos de ônibus de Salvador são, também, espaços de disseminação de um devir artístico que contrasta com o signo icônico-artístico dominante, representado pelo Estado em consonância com a indústria cultural local e nacional. Nos pontos, os ambulantes de CD atraem o público reproduzindo as músicas que vendem, em volume acima do convencional. Aqueles que vendem DVD possuem até mesmo televisores e tocadores para exibir os exemplares. Todos os estilos convivem, do gospel ao pagode. Esse mercado informal não se configura apenas uma forma de “ganhar a vida” para os ambulantes, contrapondo o mercado legal mantido pelo Estado, mas também como espaço de visibilidade de uma estética marginal, criada a partir de singularidades de resistência. Dessa forma, dissemina-se o estilo musical conhecido como arrocha.

O arrocha surgiu nos grotões urbanos, totalmente à margem dos estilos musicais empreendidos e bem valorados pela indústria cultural baiana. A força desse estilo deu-se por intermédio dos eventos, realizados fora do eixo central da cidade, e disseminou-se graças à comercialização de CD “pirata”. O rompimento da fronteira geopolítica possibilitou a massificação do arrocha. A partir daí, houve a tentativa de ressignificação do estilo, transformado-o em produto para consumo da classe média, alçando cantores ao status de artistas de primeiro escalão, representantes da cultura hegemônica. Os shows passaram a ser realizados nas tradicionais casas de espetáculo, com direito a anúncio em outdoors, rádio e televisão. O estilo musical foi incorporado por bandas tradicionais, surgindo vertentes como “arrocha universitário” – vale ressaltar o quanto o termo “universitário” imputa ao estilo uma nova formação simbólica, a legitimação do consumo. Embora atraído por uma política identitária hegemônica para a cultura da cidade, o arrocha microrrevolucionário persiste nos grotões e nos pontos de ônibus, distante dos softwares de correção de “imperfeições faciais”, modelagem do corpo em academias de ginástica e de tratamentos em clínicas de estética.

Cartaz de divulgação do DVD ao vivo de Pablo do Arrocha.

A imagem acima exemplifica a tentativa de sobrecodificação de um signo marginal para transformá-lo em mais um ícone do consumo hedonista dos produtos culturais. A associação com a produtora Som Livre, o visual que converge para a padronização estética dominante, dotada de objetivo claramente higienista, reafirma a conduta do sistema dominante em invisibilizar as identidades emancipatórias erguidas a partir de uma arte minoritária.

O arrocha pertence ao campo da arte denominado por Viana Neto (2013-1) como “arte minoritária”. Ela é – enquanto modo de vida, expressão para além da cultura – paralelamente ao conjunto estético de perceptos e afectos produzido, um campo de luta, através do qual vislumbra-se sujeitos invisíveis que, paradoxalmente, são familiares a todos. A arte minoritária escapa do molde de estetização padrão do mundo e se efetiva a partir de trocas micropolíticas, como ocorrem nos pontos de ônibus da capital baiana.

Em seu discurso, Soulages (2014) afirmou que a cidade são os humanos, as ruas em movimentos, o fluxo, a mobilidade, o trabalho e a economia, as tensões e a fraqueza, as relações sociais (públicas) e a vida privada, enfim, uma infinidade de coisas humanas. O efêmero conduz a cidade. É por isso que, mesmo ao menos atento, o corpo é hipersensibilizado pela cidade a todo instante. Ao andar por ela, o confronto se dá no espaço público, gerando tensões que explicitam as fissuras geopolíticas determinadas pelo Estado. A cidade é, portanto, a confluência da coisa urbana com a coisa humana.

Referências
BURGI, Gary. Fronteiras e formas do gratite-efêmero. In: Colóquio Internacional Fronteiras Geopolíticas e Geoartísticas, 2., 2014, Salvador. Anotações. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2014.

SOULAGES, François. As fronteiras efêmeras da cidade: estrutura e história. In: Colóquio Internacional Fronteiras Geopolíticas e Geoartísticas, 2., 2014, Salvador. Anotações. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2014.

VIANA NETO, Joaquim. Fronteiras e singularidades de resistência. In: Colloque International Frontières & Esthétisation de L’Espace Public, 2013, Paris. Anais. Paris: Institut National d’Histoire de l’Art, 2013-1.

VIANA NETO, Joaquim. L’Art du dehors: frontières & dépositions In: SOULAGES, François; MARTIN, Pascal. Les frontières du flou. Paris: L’Harmattan, 2013-2.