Artigo escrito como avaliação da disciplina HACB23 - Arte e Cidade, ministrada pelo Prof. Joaquim Viana.
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As
fronteiras do efêmero no arrocha
Carlos
Henrique Nunes Costa
Na edição II do Colóquio Internacional Fronteiras Geopolíticas e
Geoartísticas, realizado em 07 de outubro de 2014, o crítico de
arte e estética François Soulages proferiu uma palestra, na qual
definiu a cidade como elemento vivo, sempre em movimento, um
organismo complexo em constante progressão. Arquitetos costumam
tratar-lhe segundo uma visão mecanicista, cartesiana, uma simples
composição geométrica. No entanto, o aspecto do urbano pode ser
aliado ao efêmero, observando a cidade como um ser biológico que
sofre mutações. Mais do que um conjunto de blocos, quarteirões e
vias, a cidade é assunto da cultura; é o motor efêmero e
metamorfoseado da cultura (SOULAGES, 2014).
Observar o uso dos espaços públicos é uma forma eficaz de
verificar como a cidade é um organismo vivo. Os canteiros centrais
das grandes avenidas são locais cujo objetivo é transgredido
frequentemente pela população. Os semáforos instalados ao longo da
avenida Antônio Carlos Magalhães, por exemplo, com suas faixas de
pedestres, obedecem a uma lógica cartesiana de modelar os caminhos
possíveis de se tomar. Essa lógica obedece exclusivamente à
necessidade de fazer fluir os automóveis e fazer chegar às
corporações o meio de obtenção do lucro. Não se avalia o
atendimento da necessidade dos pedestres, os caminhos que percorrem
usualmente, para facilitar-lhes a mobilidade. Por isso, é comum ver
pessoas atravessando a avenida fora das faixas de pedestres,
distantes dos semáforos, andando pelo canteiro central em busca de
um percurso otimizado ao seu destino.
O Estado considera os desvios do caminho instituído como infrações
e, assim, constrói cidades meramente cartesianas, que impõem a
mecanização dos corpos. Esses movimentos adversos constituem,
segundo Viana Neto (2013-2), experiências emancipatórias que
fissuram o dimensional do Estado, provocando rupturas nos signos
icônicos. A todo momento, micropolíticas emancipatórias confrontam
a macropolítica do poder e vice-versa, num jogo de ação-reação.
O centro da cidade (ou mesmo a noção de centralidade) corresponde
ao espaço geopolítico de afirmação da identidade hegemônica. A
estetização dos espaços públicos e privados busca a modelização
global icônica da cidade. Contudo, há poderes invisíveis que
questionam as fronteiras (Viana Neto, 2013-1). A ocupação dos
pontos de ônibus, locais de aglomeração de pessoas, principalmente
em horário de pico, por parte de ambulantes, é um exemplo de
micropolítica de resistência. Banidos da possibilidade de
constituir negócio, seguindo os trâmites formais excludentes, os
ambulantes comercializam produtos diversos: bebidas, alimentos,
música, vídeos. Essa ação contribui para o rompimento das
fronteiras e explicitam a organicidade, o efêmero das cidades.
A resistência ao identificado, fichado, reconhecido provoca ruptura
com os consensos superficiais e sedutores da subjetividade dominante.
Expõe novos e diferentes modos de vida, nos quais as leis de Estado
são depostas (Viana Neto, 2013-2). Os espaços públicos e privados
são, dessa forma, remodelados, transformando-se em naturais palcos
de microrrevoluções emancipatórias, onde a subjetividade atinge,
também, o campo artístico.
Garis Burgi, em seu trabalho “Né dans la rue, mort chez cartier”,
discute as fissuras fronteiriças que a arte produzida por grupos
invisíveis socialmente causa, através dos murais grafite. Para
isso, ele distingue o ser-fronteira e o ser-sem-fronteira, sendo este
último responsável por questionar as fronteiras estéticas e morais
do senso comum dominante. A arte produzida nas ruas irrompem uma
discordância com a arte institucionalizada dos museus, galerias e
seus especialistas. “A rua é uma galeria a céu aberto”, afirma
Burgi (2014).
Seguindo o mesmo pensamento de Burgi, pode-se inferir que os pontos
de ônibus de Salvador são, também, espaços de disseminação de
um devir artístico que contrasta com o signo icônico-artístico
dominante, representado pelo Estado em consonância com a indústria
cultural local e nacional. Nos pontos, os ambulantes de CD atraem o
público reproduzindo as músicas que vendem, em volume acima do
convencional. Aqueles que vendem DVD possuem até mesmo televisores e
tocadores para exibir os exemplares. Todos os estilos convivem, do
gospel ao pagode. Esse mercado informal não se configura
apenas uma forma de “ganhar a vida” para os ambulantes,
contrapondo o mercado legal mantido pelo Estado, mas também como
espaço de visibilidade de uma estética marginal, criada a partir de
singularidades de resistência. Dessa forma, dissemina-se o estilo
musical conhecido como arrocha.
O arrocha surgiu nos grotões urbanos, totalmente à margem dos
estilos musicais empreendidos e bem valorados pela indústria
cultural baiana. A força desse estilo deu-se por intermédio dos
eventos, realizados fora do eixo central da cidade, e disseminou-se
graças à comercialização de CD “pirata”. O rompimento da
fronteira geopolítica possibilitou a massificação do arrocha. A
partir daí, houve a tentativa de ressignificação do estilo,
transformado-o em produto para consumo da classe média, alçando
cantores ao status de artistas de primeiro escalão,
representantes da cultura hegemônica. Os shows passaram a ser
realizados nas tradicionais casas de espetáculo, com direito a
anúncio em outdoors, rádio e televisão. O estilo musical
foi incorporado por bandas tradicionais, surgindo vertentes como
“arrocha universitário” – vale ressaltar o quanto o termo
“universitário” imputa ao estilo uma nova formação simbólica,
a legitimação do consumo. Embora atraído por uma política
identitária hegemônica para a cultura da cidade, o arrocha
microrrevolucionário persiste nos grotões e nos pontos de ônibus,
distante dos softwares de correção de “imperfeições
faciais”, modelagem do corpo em academias de ginástica e de
tratamentos em clínicas de estética.
Cartaz de divulgação do DVD ao vivo de Pablo do Arrocha.
A imagem acima exemplifica a tentativa de sobrecodificação de um
signo marginal para transformá-lo em mais um ícone do consumo
hedonista dos produtos culturais. A associação com a produtora Som
Livre, o visual que converge para a padronização estética
dominante, dotada de objetivo claramente higienista, reafirma a
conduta do sistema dominante em invisibilizar as identidades
emancipatórias erguidas a partir de uma arte minoritária.
O arrocha pertence ao campo da arte denominado por Viana Neto
(2013-1) como “arte minoritária”. Ela é – enquanto modo de
vida, expressão para além da cultura – paralelamente ao conjunto
estético de perceptos e afectos produzido, um campo de luta, através
do qual vislumbra-se sujeitos invisíveis que, paradoxalmente, são
familiares a todos. A arte minoritária escapa do molde de
estetização padrão do mundo e se efetiva a partir de trocas
micropolíticas, como ocorrem nos pontos de ônibus da capital
baiana.
Em seu discurso, Soulages (2014) afirmou que a cidade são os
humanos, as ruas em movimentos, o fluxo, a mobilidade, o trabalho e a
economia, as tensões e a fraqueza, as relações sociais (públicas)
e a vida privada, enfim, uma infinidade de coisas humanas. O efêmero
conduz a cidade. É por isso que, mesmo ao menos atento, o corpo é
hipersensibilizado pela cidade a todo instante. Ao andar por ela, o
confronto se dá no espaço público, gerando tensões que explicitam
as fissuras geopolíticas determinadas pelo Estado. A cidade é,
portanto, a confluência da coisa urbana com a coisa humana.
Referências
BURGI, Gary. Fronteiras e formas do gratite-efêmero. In: Colóquio
Internacional Fronteiras Geopolíticas e Geoartísticas,
2., 2014, Salvador. Anotações. Salvador: Universidade Federal da
Bahia, 2014.
SOULAGES, François. As fronteiras efêmeras da cidade: estrutura e
história. In: Colóquio Internacional Fronteiras
Geopolíticas e Geoartísticas, 2., 2014, Salvador.
Anotações. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2014.
VIANA NETO, Joaquim. Fronteiras e singularidades de resistência. In:
Colloque International Frontières & Esthétisation de
L’Espace Public, 2013, Paris. Anais. Paris: Institut National
d’Histoire de l’Art, 2013-1.
VIANA NETO, Joaquim. L’Art du dehors: frontières & dépositions
In: SOULAGES, François; MARTIN, Pascal. Les frontières du flou.
Paris: L’Harmattan, 2013-2.