sábado, 27 de abril de 2013

Reeducando o Olhar para a Arte Contemporânea

Carlos Henrique Costa

Minha primeira viagem internacional aconteceu em 2008, na qual visitei quatro cidades europeias em quinze dias: Itália, Inglaterra, França e Holanda. Afora o impacto causado pelas diferenças culturais, foi nessa viagem que passei a gostar de museus e, claro, de artes plásticas. Até então, a arte tradicional passava ao largo de meus interesses culturais. Conheci alguns dos maiores museus do mundo: Louvre, Van Gogh, Vaticano, Galeria Uffizi, Palácio de Versalhes, entre outros. Eles não só continham obras das mais conhecidas, dos artistas mais renomados, mas também eram, eles próprios, uma obra de arte a ser apreciada. Notavelmente, a visita ao Palácio de Versalhes foi a mais marcante. Não somente pelas obras, pelos edifícios, pelas decorações, pelos jardins; o que mais chamou minha atenção foi a exposição temporária de arte pop do artista plástico americano Jeff Koons, cujas obras estavam distribuídas nos diversos salões do palácio, em meio às demais obras da exposição fixa. A imagem abaixo exibe uma obra desse artista exposta naquela ocasião.

Obra exposta no Palácio de Versalhes em 2008
Todas as obras do artista americano contrastavam com o ambiente. Objetos banais, vistos costumeiramente no nosso cotidiano, estavam expostos, alguns em dimensões maiores, utilizando materiais diversos, como o “cachorro feito de bexiga” da ilustração anterior. A minha primeira reação foi de estranheza. Aquelas obras não diziam nada para mim nem para as pessoas que me acompanhavam. Elas pareciam estar no lugar errado. A cada aposento no qual deparávamo-nos com uma produção, ríamos, e também questionávamos o que era aquilo, para quê foi criado, o que fazia ali. Sem respostas. Hoje, após visitar outros museus, alguns específicos de arte contemporânea, ainda me deparo com uma grande dificuldade para interpretar essas obras. O que falta em meu olhar para produzir sentido para as obras vistas no Palácio de Versalhes e em tantas outras exposições de arte contemporânea?


Em busca de um referencial

Através de uma obra, o artista estabelece com o observador uma conexão inconsciente: onde um termina o processo de criação, o outro inicia seu processo de fruição. A criação artística é capaz de provocar reações no observador que variam de acordo com fatores estruturais, sociais e culturais de cada um. Assim, o indivíduo que contempla invoca seu passado da memória, suas vivências, perfazendo um processo de simbolização que recria a obra (PECHANSKY, 2005). Mais do que um simples espectador, o observador de uma obra de arte é também parte de sua criação.

A percepção acionada pelo olhar busca imagens referenciais para imputar sentido ao objeto. Toda forma que percebemos e criamos é acompanhada de uma inevitável valoração. Ao encontrarmos uma imagem referencial, incutimos à obra, de imediato, uma configuração determinada, um ambiente no qual ela costuma estar inserida, seus padrões funcionais, os materiais usados, enfim, todo o sentido estético (OSTROWER, 2008). Essas atribuições são individuais e estão associadas à cultura da qual o observador faz parte. O “cachorro feito de bexiga” assim foi denominado por mim após associá-lo com uma imagem referencial: objetos produzidos por um animador de festa infantil, utilizando bexigas esféricas e longas, para criar formas diversas, como a de um cachorro.

Até aí não há problema algum, pois a imagem real parece conferir com a imagem referencial. Mas as informações complementares trazidas pelo referencial chocam-se com a realidade. O que um “cachorro feito de bexiga” estava fazendo em meio a aposentos reais franceses, dividindo espaço com obras clássicas, de uma outra época? O lugar natural desse objeto seria um salão de festa infantil. Esse conflito impediu-me de produzir sentido estético para a obra.

Ostrower (2008) afirma que “se uma imagem não corresponde ao referencial que temos dela, naturalmente a rejeitamos”. Assim ocorreu com as obras impressionistas, que chocaram o público da época por utilizar combinações diferentes de cores para, por exemplo, representar a pele humana. A imagem criada pelos artistas não correspondia à imagem referencial que o público tinha. Era a quebra de um referencial comum e estabelecido culturalmente. A maioria dos artistas pintavam a pele humana o mais próximo possível do real. Da mesma forma, os visitantes do Palácio de Versalhes não esperavam encontrar em seu interior obras contemporâneas. As peças do artista americano lá expostas tinham o objetivo de provocar os visitantes, quebrar o culturalmente estabelecido e fazer conversar as artes de diferentes épocas.


A cegueira do olhar

Ostrower (1988) declara que compreender algo é criar. Dessa forma, o observador resignifica a obra, atribuindo-lhe um sentido peculiar carregado de suas referências. É por isso que um objeto artístico pode expressar diferentes coisas a cada vez que o observamos. Campos (2006) adentra ainda mais no universo do apreciador. Para ela, o nosso olhar sofre indefinidas clivagens diante do confronto das informações que possuímos com as novas percepções.

No nosso caminhar, carregamos todas as experiências como bagagem, que nos afetam e constroem nossa visão de mundo. Sempre as utilizaremos ao refletir sobre o desconhecido, que não nos inquietará até nele mergulharmos. Por isso, Campos (2006) faz uma analogia com os cristais que, ao se clivarem, formam novas faces. Essa é a síntese da criação artística. Uma obra contém um olhar, carrega uma bagagem de percepções, é o resultado de clivagens. E também o é para o público que a observa, ávido por ver revelado os segredos do artista. Porém, o observador não consegue ver-se distanciado daquela experiência; ele inflige à sua visão o seu próprio repertório de inquietações. Então, estaria incorreto afirmar que eu não consegui atribuir sentido ao “cachorro feito de bexiga”?

As obras de Jeff Koons estavam ali para causar estranheza. Elas suscitavam nas pessoas a percepção de não pertencimento das obras contemporâneas em relação ao todo; elas pareciam estar deslocadas do seu contexto natural. Assim, a sensação que tive de haver no espaço um objeto “estrangeiro” não é inválida. Porém, ainda assim, a inquietação persistiu, a exposição como um todo não fazia sentido para mim. Essa percepção só foi alterada semestre passado, após leituras de textos sobre o conceito de arte e de cultura. Os novos conhecimentos permitiram-me complementar a percepção anterior e compreender a obra. De fato, foi preciso uma alteração no que em mim estava culturalmente estabelecido, conforme Ostrower (2008), ampliando minhas referências, e causando uma nova clivagem ao revisitar as obras (mesmo que em fotografias), o que permitiu a construção de um significado, conforme Campos (2006).


Reeducando o olhar

O homem de hoje é um ser visual. A maioria dos estímulos que recebe é visual. As informações recebidas dão-se sempre pela visão. Dessa forma, o olho age como receptor externo, enquanto o olhar representa o movimento interno, intelectual, de busca de informações e de significações do que é recebido. Então, podem-se distinguir duas ações: o ver-por-ver e o ver-depois-de-olhar. O primeiro é um ato sem intenção, é enxergar mesmo que involuntariamente, através de estímulos luminosos. O segundo, e mais importante, é o conhecer, reconhecer, medir, definir, caracterizar, interpretar, em suma, pensar (BOSI, 1988). 

Nas cidades contemporâneas, tudo é imagem. Os estímulos luminosos chegam rapidamente, a todo o momento, em todos os lugares, e se vão com a mesma rapidez.  A velocidade do dia a dia torna a interação com o mundo algo efêmero: vê-se mais, olha-se menos (PEIXOTO, 1988-I). As imagens são produzidas para consumo imediato. As informações nelas embutidas são diretas, rasas, de fácil e rápida assimilação. O olhar é pouco incitado. O ver tornou-se lugar-comum.

“Tudo só existe na superfície sem fundo da imagem”, disse Peixoto (1988-I) ao argumentar que não se produz/procura mais o conteúdo, contenta-se apenas com a casca, com imagens que não tem tempo. Assim, estamos acostumados a parar diante de um objeto artístico e exigir dele próprio um rápido significado. Não nos enxergamos coautores daquele trabalho, cujo significado é dado igualmente pelo artista e pelo seu público. Tratamos a arte como uma propaganda, algo que dura trinta segundos em uma televisão, cinco segundos em um cartaz afixado na placa publicitária de uma movimentada avenida, e que passa de forma direta e clara a sua mensagem. Assim, formamos poucas imagens referenciais (OSTROWER, 2008), temos bagagens mais homogêneas que tornam a interpretação das coisas também mais superficiais (BOSI, 1988). 
É preciso ter tempo para perceber a força e a atmosfera que emanam dos rostos e da paisagem. Só assim é possível captar o drama interior das pessoas e a serenidade dos lugares. Tudo aquilo que não se estampa de imediato.” (PEIXOTO, 1988-II, p. 305)
Na rampa de saída de minha empresa, logo que passamos a porta, nos deparamos com um jambeiro. Ali, na sua copa, todo fim de tarde, dezenas de pássaros se amontoam e cantam e voam, em meio ao barulho de uma das vias mais movimentadas da cidade, a paralela. Ao sair do trabalho, ávidas por ir para casa, para o bar, para o shopping, ocupadas com os próximos compromissos assumidos, poucas pessoas dão-se conta da festa que ocorre. Perdemos a percepção para os gestos cotidianos, que são lançados ao banal. E a arte também se encontra entre esses gestos.

Esperamos da “arte” nada mais que um momento de efusão emocional, porém passageiro, voltado para o entretenimento. Antes da viagem à Europa, em 2008, eu achava a visita a museus um programa chato. Era coisa de pseudo-intelectuais. Eu não interagia com a arte brasileira em geral, quiçá a local, de minha cidade. Meu repertório resumia-se ao que era oferecido como produto, consumido pela maioria das pessoas que me rodeavam. Ao me colocar na situação de estrangeiro, no entanto, senti-me instigado a conhecer os tão conhecidos museus. A minha bagagem cultural foi aumentando, a vontade de conhecer também. Passei a frequentar mais os museus, as livrarias, o cinema, o teatro, os shows dos mais variados estilos musicais. Ampliei minhas referências. À medida que observava as obras, a minha percepção sobre elas aumentava – não por possuir conteúdo teórico, mas por estar mais aberto às provocações e dispor mais tempo para senti-las. Sendo este um movimento incessante, o estranhamento causado por obras contemporâneas tende, portanto, a diminuir.

Referências Bibliográficas

BOSI, Alfredo. Fenomenologia do Olhar. In: NOVAES, Adauto et al. O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. P. 65-87.

CAMPOS, Elisa. Planos de Clivagem: Uma Abordagem sobre o Olhar. In: Concepções contemporâneas da arte. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

OSTROWER, Fayga. A Construção do Olhar. In: NOVAES, Adauto et al. O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. P. 167-181.

OSTROWER, Fayga. Caminhos intuitivos e inspiração. In: OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 2008. P. 55-76.

PECHANSKY, Isaac. O Impacto Estético: Um Olhar Psicanalítico. In: PECHANSKY, Clara. A face escondida da criação. Pelotas: Universitária, 2005. P. 113-125.

PEIXOTO, Nelson Brissac. O Olhar do Estrangeiro. In: NOVAES, Adauto. O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. P. 361-365.

PEIXOTO, Nelson Brissac. Ver o invisível: a ética das imagens. In: NOVAES, Adauto. O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. P. 301-319.



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