Carlos
Henrique Costa
As festas são uma oportunidade
para reforçar as diferenças sociais. Os indivíduos mostram
publicamente, nestas ocasiões, seu prestígio social e seu poder. Do
Brasil colonial até os dias atuais, a maior festa popular do país,
o carnaval, exibe a olho nu a segregação existente na sociedade. A
história do carnaval reflete a opressão às minorias, ampliada
atualmente pelos interesses econômicos sob a folia. A cada ano, os
blocos afros sofrem dificuldade para ir às ruas no carnaval de
Salvador. Sem patrocínio, com uma ajuda pífia do governo e com os
piores horários de desfile, a cultura afro é agora disseminada
pelas músicas cantaroladas pelas estrelas da axé music e pelo
orgulho identitário da baianidade nagô. Nesse contexto de
segregação cultural, o projeto de criação de um circuito
exclusivo para os blocos afros, intitulado Afródromo, pleiteado pela
Liga dos Blocos Afros, apresenta-se como uma tentativa idêntica de
separar essas entidades, afastá-las do circuito comercial, no qual a
mídia, os patrocinadores, as autoridades e os demais foliões
poderão desfilar seu prestígio e ostentar sua posição social com
toda a tranquilidade.
No período colonial1,
as celebrações que ocorriam mobilizavam toda a cidade. Era comum as
autoridades da época solicitarem aos moradores ornamentar a fachada
de suas casas com “luminárias”. Nas regiões mais ricas da
colônia, os comerciantes ornamentavam até as praças públicas num
claro intuito de mostrar o seu lugar na comunidade. Assim, o
comerciante que oferecesse mais “luminárias”, mais status
adquiria em relação aos demais e mais poder reafirmaria em relação
à comunidade. Os festejos eram, portanto, oportunidades de
manifestar as relações de poder existentes nas cidades.
A história do carnaval2
é também marcada por relações de poder. Independente da época, a
elite sempre deteve o controle do processo de legitimação da festa.
Ela dizia o que se podia e o que não se podia fazer, criando uma
separação entre as classes sociais. Com o apoio do Estado, tentava
a todo custo civilizar a barbárie do entrudo e demais manifestações
populares. Na década de 1920, por exemplo, o Corso era a principal
manifestação carnavalesca da elite. As famílias burguesas
desfilavam em seus longos carros pela Avenida Central, no Rio de
Janeiro, com vestimentas luxuosas. Os grupos populares que quisessem
participar tinham que se contentar com o espaço entre a fila de
veículos e os canteiros centrais da avenida. Anúncios nos jornais,
publicados pelo chefe da polícia local, advertiam os participantes
do impedimento que seus grupos poderiam causar aos veículos do Corso
ao tentar desfilar na mesma avenida. O preço a pagar pela
desobediência era a expulsão do local. O único dia permitido para
que os grupos populares desfilassem era a segunda-feira, mas só a
partir das 21 horas.
O espaço do desfile sempre foi uma briga entre grupos populares e da
elite. No carnaval de 2006, em Salvador, o cantor Bell Marques,
vocalista da banda Chiclete com Banana – bloco de trio cujo
associado desembolsa mais de dois mil reais para brincar três dias
–, com a ajuda da Polícia Militar que fez um cordão de
isolamento, impediu o bloco Afoxés Filhos de Gandhy de adentrar à
avenida Carlos Gomes. O motivo seria o atraso que o afoxé vinha
causando no desfile do bloco de trio por seguidos anos. A regra que
definia a ordem de desfile das entidades favorecia ao afoxé. Foi,
portanto, uma clara demonstração do poder econômico, sob a égide
do Estado, que deixa cada vez menos espaço para blocos carnavalescos
de menor expressão de mercado, mas não menos tradicionais.
O Afoxés Filhos de Gandhy é um dos integrantes da Liga dos Blocos
Afros, associação que reúne os blocos carnavalescos que sofrem
dificuldades para desfilar todos os anos e cujos foliões são, em
sua maioria, pessoas de baixa renda, negros. Deslocados do circuito
comercial da festa, com pouca possibilidade de conseguir patrocínio,
pois lhes são concedidos os piores horários de desfile, o que não
lhes assegura visibilidade, contam somente com a ajuda do governo
para ir às ruas. Na tentativa de devolver o prestígio para essas
entidades, a Liga apresentou à Prefeitura de Salvador um projeto de
criação de um circuito exclusivo, dedicado aos blocos afros,
chamado Afródromo. As autoridades reservaram o comércio, espaço
nunca utilizado para a festa, com graves problemas de infra-estrutura
– as políticas de preservação dessa área não surtiram efeito
até então.
Única entidade a rechaçar a ideia do Afródromo, o bloco afro Olodum, representado por seu presidente João Jorge, considera esta uma reivindicação
contraproducente3.
Para ele, os blocos afros deveriam pleitear um patrocínio
equitativo, a distribuição mais justa dos recursos públicos
destinados à festa, a revisão da ordem do desfile para dar
visibilidade a todos. Enquanto prevalecer o privilégio imposto pelo
capital, a segregação continuará.
Logotipo do projeto. |
O carnaval de Salvador sofre forte apelo econômico. Todos querem
lucrar com a festa. Assim, privatiza-se o espaço público, ocupam-se
cada vez mais as avenidas com os grandes blocos de trio, verdadeiras
marcas que espremem o folião pipoca e reservam menos espaço para as
entidades afros. Do colonialismo ao capitalismo, o poder econômico
sobrepuja a alegria. Assim como o Corso, os trios de corda espremem
os foliões-pipoca e detêm o controle do processo de legitimação
da festa. Nesse sentido, o projeto de criação do Afródromo ajuda a
reafirmar a relação de poder existente e não soluciona os
problemas das entidades de menor poder econômico.
O Afródromo causará um isolamento, prejudicial ao conceito de
interculturalidade, no qual as diferenças são expostas e
confrontadas. Se o projeto for executado, os blocos integrantes da
Liga dos Blocos Afros persistirão invisíveis na folia, com os mesmo
problemas para pôr-se nas ruas. O novo circuito não será uma ilha
isolada, onde um carnaval totalmente independente acontecerá. Ele
representa apenas a ilusão de que uma solução foi tomada. Enquanto
isso, os blocos de trio continuarão desfilando seu poder aquisitivo
pelas principais avenidas da cidade.
Notas
1 Conforme
Mary Del Priore em “Festas e Utopias no Brasil Colonial”,
publicado em 2000 pela editora brasiliense.
2 “O
Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro”, de autoria de Felipe
Ferreira, conta em detalhes a história da maior festa popular do
país.
3 O
posicionamento de João Jorge pode ser conferido na entrevista que
concedeu à Folha de São Paulo em 11/02/2013, disponível em
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/93300-a-bahia-virou-a-terra-de-uma-artista-so-ivete-sangalo.shtml.
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