Primeira adaptação de Navalha na Carne, em 1969
Carlos
Henrique Nunes Costa
É no quarto de um hotel barato que se reúnem as três únicas
personagens da peça Navalha na Carne, de Plínio Marcos. Em meio a
cinco mobílias gastas, a prostituta Neusa Sueli, o cafetão Vado e o
homossexual Veludo desvelam uma ruidosa dinâmica de opressão, ora
no papel de vítimas, ora no papel de algozes. A realidade é
apresentada in natura e, por
isso mesmo, dota as personagens de grande complexidade. Elas são
genuínas feras lutando com seu instinto pela sobrevivência.
Logo nos primeiros diálogos, torna-se evidente a violência presente
na relação entre Neusa Sueli e Vado. O tratamento ríspido do
cafetão para com a prostituta, não recíproco, levanta suspeita
sobre a hierarquia dessa relação e suas consequências. A entrada
em cena de Veludo modifica o enlace do casal, reconfigurando as teias
de poder existentes, embora ainda sejam a reprodução da opressão
social a que estão submetidos.
O texto não encerra uma postura moral; pelo contrário, a moral
passa ao largo de toda a trama da peça. Plínio Marcos não valora a
situação; ele apenas a apresenta. Assim como sua primeira obra,
Barrela, Navalha na Carne apresenta-se como interlocutora de um
extrato social invisibilizado no teatro brasileiro daquele período.
Plínio Marcos estreou como dramaturgo em 1959, em Santos, sua cidade
natal. Começou a carreira escrevendo peças que retratavam a vida de
páreas sociais. O universo de prostitutas, cafetões, loucos,
homossexuais, bandidos, marginais vinham à tona através de suas
obras. Ao contrário dos dramaturgos da época, que, engajados
politicamente contra a Ditadura Militar, alçavam ao estado de herói
o proletariado brasileiro, Plínio deu vazão a personagens sem
interesse político, sem qualquer propósito revolucionário. Ainda
assim, foi visto como uma ameaça ao regime e teve diversas obras
censuradas.
Vieira (1994) divide a dramaturgia de Plínio Marcos em três fases: anos
1960 e 1970, cujas peças escritas contêm a maior parte das
personagens marginais e desvalidas; 1970 a 1976, período em que se
dedicou a musicais; e 1978 a 1988, fase dos textos míticos. Mas foi
a primeira fase do autor que o levou, mais tarde, ao reconhecimento,
sendo tido como um dos grandes nomes do Teatro da Crueldade, em sua pretensa vertente brasileira.
O teatro da primeira fase de Plínio
Marcos caracteriza-se por personagens autênticos, movidos por seus
sentimentos. Estando o rancor, o ressentimento, o ódio presentes na
dinâmica social desses indivíduos, a violência acaba por se tornar
o fio condutor do enredo. Os conflitos são mostrados de imediato,
mesmo sem antes delinear o perfil de cada personagem. Os diálogos
são providos de um vigor que desnuda com crueza a situação
(VIEIRA, 1994).
No Teatro da Crueldade, movimentos, gestos, emoções se expandem; o
teatro adquire outra expressividade que não a das palavras. De mera
distração, torna-se um meio de questionamento do homem, um olhar
voltado para o seu interior (ARTAUD, 2006). E, apesar de não emitir
juízo de valor em seus textos, pois suas personagens nada conhecem
de moral, as escolhas de Plínio Marcos deixam clara a ideologia que
legitima a exclusão social.
Segundo Souza (2009), a ideologia meritocrática vigente, embasada
nas premissas democráticas-capitalistas de igualdade e liberdade dos
indivíduos, invisibiliza a classe social. Sob o pretexto de
igualdade de oportunidades, justificam-se as desigualdades,
culpabilizando os oprimidos por sua posição social – vítimas de
si mesmos. Essa ideia está incrustada no senso comum de tal forma
que os indivíduos marginalizados reproduzem, sem se dar conta, a
própria precariedade. Eles acabam por reproduzir em seu meio os
esquemas do poder dominante.
Essa condição está presente acintosamente nas obras da primeira
fase de Plínio Marcos. Em Navalha na Carne, é percebida ao longo da
trama, através do jogo de submissão ao qual cada personagem impõe
à outra. A humilhação física e psicológica é uma arma constante
para estar no centro do poder. A relação entre eles é tão
conflituosa que se torna premente indagar o porquê de Neusa Sueli
continuar com Vado, em que se sustenta tal dependência, se existe
afeto.
Neusa Sueli sustenta Vado, que diz ser este o motivo de continuar na
relação. Portanto, a relação de poder não é, necessariamente,
econômica; não para essa classe social. Neusa demonstra não querer
perder seu cafetão e não o desmente quando este afirma que “Mulher
que quer se bacanear com cara linha de frente como eu tem que se
virar certinho”. A dependência é, então, pautada na imagem que
Vado traz para Neusa. Ainda que submissa a ele, fora daquele quarto
de hotel ela ocuparia uma posição perante as demais colegas de
profissão que sozinha não conseguiria manter.
Em determinado momento da peça, Neusa Sueli diz-se cansada da vida
que leva. Reclama do comportamento de Vado diante de seu esforço
para ganhar a vida. “Duvido que gente de verdade viva assim, um
aporrinhando o outro, um se servindo do outro”. Mas, parada na
porta do quarto após a saída de Vado, pergunta-lhe, como quem pede,
se ele vai voltar. É a inércia frente àquela situação. As
personagens não são dotadas de senso político.
Neusa Sueli está distante de representar um modelo de mulher
feminista. Ela almeja uma vida como a de todo mundo, inclusive no
amor. Mas essa é uma fantasia que nunca será realizada.
Ironicamente, ela está “presa” à Vado, seu antagonista,
justamente o oposto do amor sonhado. É, portanto, retratada como uma
mulher fraca.
Vera Fishcer como Neusa Sueli na segunda adaptação para o cinema.
A ideia de opressão feminina é também reforçada pela personagem do homossexual Veludo. Durante a briga para forçar uma confissão do roubo do dinheiro que Neusa havia deixado para Vado, a prostituta agride o homossexual, arranhando seu rosto. Nesse momento, Veludo ameaça Neusa e diz a Vado que pode enfrentá-la de igual para igual, pois ela é mulher. Soma-se a isso o fato de Veludo ter roubado o dinheiro para sair com um rapaz. Decerto, Veludo também precisa pagar para ter companhia.
Na dramaturgia pliniana, homossexuais e mulheres são elos igualmente
fracos, pois dotados de um devir feminino. Embora faça parte de uma
classe excluída, o cafetão exerce o papel de dominante. O homem
heterossexual e viril subjuga o feminino. Retrata-se, dessa forma,
uma hierarquia de gênero não inventada por aquelas personagens, mas
ainda assim desempenhada por eles com veemência. Sem perceber, eles
reproduzem a teia social do poder dominante que os imobiliza na
exclusão. E, convivendo diariamente com essa realidade, passam a
aceitá-la e a servir-se dela.
“Qual o sentido de autoconfiança que é possível para esses
seres humanos que só aprenderam a usar e serem usados? Que tipo de
relação consigo mesmos? Que tipo de relação com os 'outros'?”
(SOUZA, 2009, 48)
Referências
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Tradução: Teixeira
Coelho. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
MARCOS, Plínio. Navalha na Carne. In: ZANOTTO, Ilka Marinho.
Plínio Marcos: melhor teatro. São Paulo: Global, 2003.
SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo
Horizonte: UFMG, 2009.
VIEIRA, Paulo. Plínio Marcos, a flor e o mal. São Paulo:
Firmo, 1994.
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