sábado, 18 de outubro de 2014

A crueldade da opressão feminina em Navalha na Carne

Primeira adaptação de Navalha na Carne, em 1969

Carlos Henrique Nunes Costa

É no quarto de um hotel barato que se reúnem as três únicas personagens da peça Navalha na Carne, de Plínio Marcos. Em meio a cinco mobílias gastas, a prostituta Neusa Sueli, o cafetão Vado e o homossexual Veludo desvelam uma ruidosa dinâmica de opressão, ora no papel de vítimas, ora no papel de algozes. A realidade é apresentada in natura e, por isso mesmo, dota as personagens de grande complexidade. Elas são genuínas feras lutando com seu instinto pela sobrevivência.
Logo nos primeiros diálogos, torna-se evidente a violência presente na relação entre Neusa Sueli e Vado. O tratamento ríspido do cafetão para com a prostituta, não recíproco, levanta suspeita sobre a hierarquia dessa relação e suas consequências. A entrada em cena de Veludo modifica o enlace do casal, reconfigurando as teias de poder existentes, embora ainda sejam a reprodução da opressão social a que estão submetidos.
O texto não encerra uma postura moral; pelo contrário, a moral passa ao largo de toda a trama da peça. Plínio Marcos não valora a situação; ele apenas a apresenta. Assim como sua primeira obra, Barrela, Navalha na Carne apresenta-se como interlocutora de um extrato social invisibilizado no teatro brasileiro daquele período.
Plínio Marcos estreou como dramaturgo em 1959, em Santos, sua cidade natal. Começou a carreira escrevendo peças que retratavam a vida de páreas sociais. O universo de prostitutas, cafetões, loucos, homossexuais, bandidos, marginais vinham à tona através de suas obras. Ao contrário dos dramaturgos da época, que, engajados politicamente contra a Ditadura Militar, alçavam ao estado de herói o proletariado brasileiro, Plínio deu vazão a personagens sem interesse político, sem qualquer propósito revolucionário. Ainda assim, foi visto como uma ameaça ao regime e teve diversas obras censuradas.
Vieira (1994) divide a dramaturgia de Plínio Marcos em três fases: anos 1960 e 1970, cujas peças escritas contêm a maior parte das personagens marginais e desvalidas; 1970 a 1976, período em que se dedicou a musicais; e 1978 a 1988, fase dos textos míticos. Mas foi a primeira fase do autor que o levou, mais tarde, ao reconhecimento, sendo tido como um dos grandes nomes do Teatro da Crueldade, em sua pretensa vertente brasileira.
O teatro da primeira fase de Plínio Marcos caracteriza-se por personagens autênticos, movidos por seus sentimentos. Estando o rancor, o ressentimento, o ódio presentes na dinâmica social desses indivíduos, a violência acaba por se tornar o fio condutor do enredo. Os conflitos são mostrados de imediato, mesmo sem antes delinear o perfil de cada personagem. Os diálogos são providos de um vigor que desnuda com crueza a situação (VIEIRA, 1994).
No Teatro da Crueldade, movimentos, gestos, emoções se expandem; o teatro adquire outra expressividade que não a das palavras. De mera distração, torna-se um meio de questionamento do homem, um olhar voltado para o seu interior (ARTAUD, 2006). E, apesar de não emitir juízo de valor em seus textos, pois suas personagens nada conhecem de moral, as escolhas de Plínio Marcos deixam clara a ideologia que legitima a exclusão social.
Segundo Souza (2009), a ideologia meritocrática vigente, embasada nas premissas democráticas-capitalistas de igualdade e liberdade dos indivíduos, invisibiliza a classe social. Sob o pretexto de igualdade de oportunidades, justificam-se as desigualdades, culpabilizando os oprimidos por sua posição social – vítimas de si mesmos. Essa ideia está incrustada no senso comum de tal forma que os indivíduos marginalizados reproduzem, sem se dar conta, a própria precariedade. Eles acabam por reproduzir em seu meio os esquemas do poder dominante.
Essa condição está presente acintosamente nas obras da primeira fase de Plínio Marcos. Em Navalha na Carne, é percebida ao longo da trama, através do jogo de submissão ao qual cada personagem impõe à outra. A humilhação física e psicológica é uma arma constante para estar no centro do poder. A relação entre eles é tão conflituosa que se torna premente indagar o porquê de Neusa Sueli continuar com Vado, em que se sustenta tal dependência, se existe afeto.
Neusa Sueli sustenta Vado, que diz ser este o motivo de continuar na relação. Portanto, a relação de poder não é, necessariamente, econômica; não para essa classe social. Neusa demonstra não querer perder seu cafetão e não o desmente quando este afirma que “Mulher que quer se bacanear com cara linha de frente como eu tem que se virar certinho”. A dependência é, então, pautada na imagem que Vado traz para Neusa. Ainda que submissa a ele, fora daquele quarto de hotel ela ocuparia uma posição perante as demais colegas de profissão que sozinha não conseguiria manter.
Em determinado momento da peça, Neusa Sueli diz-se cansada da vida que leva. Reclama do comportamento de Vado diante de seu esforço para ganhar a vida. “Duvido que gente de verdade viva assim, um aporrinhando o outro, um se servindo do outro”. Mas, parada na porta do quarto após a saída de Vado, pergunta-lhe, como quem pede, se ele vai voltar. É a inércia frente àquela situação. As personagens não são dotadas de senso político.
Neusa Sueli está distante de representar um modelo de mulher feminista. Ela almeja uma vida como a de todo mundo, inclusive no amor. Mas essa é uma fantasia que nunca será realizada. Ironicamente, ela está “presa” à Vado, seu antagonista, justamente o oposto do amor sonhado. É, portanto, retratada como uma mulher fraca.

Vera Fishcer como Neusa Sueli na segunda adaptação para o cinema.

A ideia de opressão feminina é também reforçada pela personagem do homossexual Veludo. Durante a briga para forçar uma confissão do roubo do dinheiro que Neusa havia deixado para Vado, a prostituta agride o homossexual, arranhando seu rosto. Nesse momento, Veludo ameaça Neusa e diz a Vado que pode enfrentá-la de igual para igual, pois ela é mulher. Soma-se a isso o fato de Veludo ter roubado o dinheiro para sair com um rapaz. Decerto, Veludo também precisa pagar para ter companhia.
Na dramaturgia pliniana, homossexuais e mulheres são elos igualmente fracos, pois dotados de um devir feminino. Embora faça parte de uma classe excluída, o cafetão exerce o papel de dominante. O homem heterossexual e viril subjuga o feminino. Retrata-se, dessa forma, uma hierarquia de gênero não inventada por aquelas personagens, mas ainda assim desempenhada por eles com veemência. Sem perceber, eles reproduzem a teia social do poder dominante que os imobiliza na exclusão. E, convivendo diariamente com essa realidade, passam a aceitá-la e a servir-se dela.

Qual o sentido de autoconfiança que é possível para esses seres humanos que só aprenderam a usar e serem usados? Que tipo de relação consigo mesmos? Que tipo de relação com os 'outros'?” (SOUZA, 2009, 48)

Referências
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Tradução: Teixeira Coelho. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

MARCOS, Plínio. Navalha na Carne. In: ZANOTTO, Ilka Marinho. Plínio Marcos: melhor teatro. São Paulo: Global, 2003.

SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: UFMG, 2009.


VIEIRA, Paulo. Plínio Marcos, a flor e o mal. São Paulo: Firmo, 1994.

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